A lógica infernal da burocracia no Brasil

Tenho um amigo que resolveu abrir uma MEI e virar “micro empreendedor individual”. O cara foi lá, abriu a empresa e começou a trabalhar. Prestou alguns serviços até que um cliente disse que só lhe pagaria se ele abrisse uma conta pessoa jurídica. O sujeito foi no banco abrir a conta e lhe pediram a carteira de identidade. Ele havia perdido a carteira mas tinha o passaporte e a carteira de trabalho. Não deu. Foi no Poupatempo fazer a identidade e lhe pediram a certidão de nascimento. Mostrou passaporte e outros papéis mas não adiantou. Precisava da certidão. Ele era novo em São Paulo e pediu para um parente revirar as coisas do apartamento, em Curitiba. O cara achou e mandou pelo correio. De volta ao Poupatempo lhe pediram dez dias para entregar a carteira. Depois voltou no banco, entregou a papelada, desta vez com a carteirinha, e lhe prometeram que em até dez dias terá uma resposta da análise dos documentos. O dinheiro ainda não recebeu, mas, como bom brasileiro, não desiste nunca.

A burocracia no Brasil é sempre perfeitamente lógica. Não é lógico mostrar a identidade pra abrir a conta no banco? Além disso, cá entre nós, custa alguma coisa mostrar a certidão para fazer a nova carteirinha? Custava alguma coisa o sujeito andar com o documento em uma pasta, organizado, ao invés de deixar em uma gaveta no apartamento antigo? Qual é exatamente o problema?

Diria que é exatamente este: cada exigência burocrática tem sua lógica e poderia ser, com alguma dose de organização, atendida por qualquer pessoa ou empresa. É exatamente este o caso das regras que compõem o cipoal do pagamento de impostos, no Brasil. Cada uma tem sua explicação. Meu contador, aliás, é mestre em me explicar, sempre que eu fico nervoso, a perfeita razão de cada uma. No conjunto, é por causa delas que estamos em 181º entre 190 países no ranking do Banco Mundial que mede a facilidade para pagar impostos. Por isso nossas empresas gastam 2.038 horas todos os anos para lidar com tributos, contra 163 horas na média dos países da OCDE.

Também é por isso que estamos em último lugar no ranking de encargos trabalhistas elaborado entre 29 grandes economias pela Rede Internacional de Contabilidade e Consultoria UHY, com sede em Londres. Não faz sentido limitar os contratos temporários a noventa dias? Não é lógico pagar 40% de multa sobre o fundo de garantia do funcionário demitido? Não é lógico, aliás, que o dinheiro do fundo seja gerido por um conselho de vinte e quatro pessoas, junto à Caixa Econômica? O pessoal não iria torrar tudo, se cada maluco pudesse decidir por conta própria o que fazer com o seu dinheiro? É tudo perfeitamente lógico, não é mesmo?

Semana passada, o Ministro Henrique Meirelles, prometeu reduzir a burocracia para pagar impostos. A promessa já havia sido feita no ano passado, mas não é esse o ponto. Meirelles tem crédito, entre outras coisas por que foi o arquiteto da PEC do limite do gasto público. Ele diz que há um time de técnicos do Ministério trabalhando para descobrir que regras, exatamente, é possível “desregrar”. Me lembrou o novo vereador paulista, Fernando Holiday, e sua ideia de fazer um “revogaço” na cidade de São Paulo. Ao invés de criar novas regras, descriar.

Achei a ideia muito boa. Oxalá ela inspire vereadores, deputados e grupos de cidadãos, Brasil afora. Apenas acho que nosso problema é muito mais amplo do que suprimir essa ou aquela regra tributária ou trabalhista. Vamos lá: por que precisamos de um título de eleitor? Por que cargas d’agua precisamos (eu mesmo, desatento, descobri isso tempos atrás) renovar a carteira de motorista a cada cinco anos? Pra que o pobre coitado que acabou de ficar desempregado tem que gramar na fila de uma agência do Sine para tirar o seguro desemprego?

Revirar essas coisas é mexer com o Brasil barroco que nos tornamos. Não são apenas as duas mil horas que as empresas gastam para lidar com seus impostos. É o tempo incontável que perdemos todos os dias para carimbar o óbvio em cartórios e pagar multas de R$ 3,51 porque não fomos votar nos dois turnos das últimas eleições.

País barroco e imensamente difícil de mudar. Por uma razão: em que pese concordamos que toda essa burocracia, no conjunto, passou do ponto, garanto que a opinião será outra quando passamos a analisar regra por regra, documento por documento, multa por multa. A cada regra corresponderá uma certa “racionalidade” e um grupo disposto a defendê-la. E mais: a supressão de cada regra não fará grande diferença na vida de ninguém, mesmo que a soma de todas as regras possa piorar muito a vida de todo mundo.

Por essa razão prosaica, o desejo abstrato de fazer a grande mudança pode ser forte, mas é fraco o incentivo concreto para fazer cada reforma. É exatamente o mesmo problema enfrentado pelos projetos de redução do tamanho do Estado. A extinção de qualquer órgão público não resolverá o problema fiscal, ainda que uma redução coordenada de muitas repartições, autarquias, fundações, empresas e fontes de gastos não prioritários poderá oferecer uma resposta.

Arrisco dizer que nos tornamos um país campeão em burocracia essencialmente porque o individuo, o “sem corporação”, é sub representado em nosso mundo político. Ninguém para pra perguntar, numa tarde quente de Brasília, ao se discutir uma nova regra, se ela é estritamente necessária e quantas horas da vida de um cidadão ela vai custar. É no silêncio dessas tardes quentes que perdemos a mão. Há um problema ético aí. Um punhado de gente por vezes bem intencionada toma decisões e todos pagam a conta. De bico calado. Encaramos o cartório, carregamos nossos documentos, nos adaptamos. Formamos filas, nos domingos de votação, pra “justificar a ausência”, pagamos as multas e corremos atrás da papelada.

E de vez em quando damos um jeitinho. Não queremos saber da reforma trabalhista, mas somos campeões de trabalho informal. Quando morava no Rio, fazia troça dos meus amigos, todos entusiastas da Lei Seca e todos grudados no twitter com os locais de blitz, depois de tomar uns tragos.

Se nossa liderança pública quiser mesmo reduzir a burocracia, o ponto de partida é assumir que toda norma a ser extinta supõe uma tomada de risco. Risco de que alguém não diga a verdade, que alguém não pague, que um carimbo a mais poderia ter evitado alguma pilantragem. Tempos atrás me vi pensando nessas coisas, quando peguei um metrô, em Viena. Paguei o ticket na maquininha mas não achei catraca nem cobrador. É uma trivialidade vienense, assim é uma trivialidade brasileira ter um cobrador e uma catraca em cada ônibus. São tipos de sociedade.

Reduzir a burocracia, no fundo, é um exercício de transferência de poder. É isso: significa retirar poder do Estado e aumentar a cota de liberdade e responsabilidade das pessoas. Dias atrás li o comentário de uma senhora que dizia não usar o Uber nem outros aplicativos por que “eles não pagam imposto”. Ela se dizia feliz pagando mais para andar de táxi e não compactuar com aquela injustiça. Uma heroína meio à moda D. João VI, andando na direção inversa da qual o que o País precisa caminhar.

Por Fernando Schüler,, cientista político, professor e doutor em filosofia

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