A poderosa arma de um pacifista

CULTURA

  Uma das principais vozes pelo diálogo entre Israel e Palestina, o escritor David Grossman, que em 2006 perdeu o filho Uri na Guerra Israel-Líbano, defende o papel da literatura como forma de compreender o outro – mesmo que o “outro” seja um inimigo  – e assim furar as bolhas do fanatismo. É o que ele explica nesta entrevista exclusiva para a Revista VOTO

Por Luiza Guerim

Em tempos caóticos, a literatura é o principal caminho para que um indivíduo se torne uma pessoa melhor. É o que sentencia David Grossman, um dos principais escritores israelenses da atualidade. Nascido em 1954, o autor já escreveu mais de uma dezena obras e ganhou cerca de 15 prêmios internacionais. Voz incansável a clamar por diálogos de paz entre Israel e Palestina, Grossman é reconhecido mundialmente como um proeminente pacifista – um epíteto que, aliás, ele rechaça: “Eu já carreguei armas, já participei de guerras. Sou um lutador da paz, não um pacifista”.

Entre 1971 e 1976, o escritor serviu na unidade de inteligência do exército de Israel. Em 2006, durante a Guerra Israel-Líbano, perdeu o filho Uri, então com 20 anos, quando o tanque em que ele estava foi atingido por um míssil. Mesmo tendo vivido os horrores típicos de conflitos armados, Grossman acredita na empatia que a literatura proporciona e no senso de humor como formas de compreender as outras pessoas – seus anseios, suas vontades e suas atitudes. Para ele, escrever é uma maneira de se impor diante da opressão.

Em entrevista exclusiva concedida a VOTO no fim de 2016, quando visitou Porto Alegre para a Feira do Livro, o autor de obras como O livro da gramática interior e A mulher foge analisou a conjuntura global atual, falou do déficit de grandes lideranças e, claro, refletiu sobre a importância da literatura.

 Impressões sobre o Brasil

“É um país gigantesco. Como posso resumir em uma frase? O Brasil consiste em tantas coisas. Eu gosto de estar aqui. Sinto que existe algo na voltagem emocional do povo brasileiro que é parecida com a do israelense. Não é segredo que existe muita simpatia entre Brasil e Israel. Claro, não estamos cientes de toda a complexidade da situação aqui, da dimensão da crise econômica, dos problemas políticos e do que aconteceu com a presidente afastada. São detalhes que você saberá apenas se estiver interessado efetivamente no Brasil. Mas eu gosto das vibrações daqui. Mesmo com todos os problemas, existe uma vitalidade básica nas pessoas e um talento para vida que eu gosto.”

Contexto global

“O mundo vive um momento de instabilidade e de falta de confiança. Vemos isso no Oriente Médio, nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha com o Brexit, na África com todas as atrocidades e nas ondas de imigrantes na Europa. Existe um sentimento de que o mundo que conhecemos está abalado. Que face ele terá no futuro? Vimos isso na batalha entre Donald Trump e Hillary Clinton, como símbolo das tendências nacionais. Não posso dizer que Trump é a nova ordem porque, de tantas formas, ele representa a corrupção da nova ordem – mas ele conseguiu se mostrar como algo novo. Acho que ele provoca em seus eleitores e apoiadores o prazer de quebrar com a velha ordem. Ele é um mestre em criar caos, se beneficiando e prosperando no caos. De certa forma, Trump reflete algo que acontece no mundo, uma certa tensão entre elementos ou situações caóticas que, alguma vezes, se tornam terríveis ou atrozes – como o fenômeno do Estado Islâmico. O Estado Islâmico está desmantelando tudo aquilo que sabemos sobre moralidade e humanidade. Até mesmo através dos atos físicos, como decapitar pessoas, eles manifestam algo tão terrível e assustador que não existem palavras. Nos leva aos lugares mais escuros e primitivos dentro de nós.”

 Escassez de lideranças

“Bons líderes sempre foram raros, tanto na religião quanto na política. Estamos procurando desesperadamente por eles, por causa de alguns bons exemplos do passado. Mas eles sempre foram minoria – os bons, corajosos e inteligentes. Quantos deles nos últimos 200 anos não eram despóticos, cruéis e indiferentes com o sofrimento dos outros? Um líder importante de hoje é o Papa Francisco, com seu exemplo e modelo de pessoa, com sua sinceridade e simplicidade, com seu calor e humanidade. Tudo isso é muito raro, ainda mais quando lembro do papa anterior a ele. E posso dizer que, em Israel e na Palestina, há anos não temos um líder bom que permite que o povo se recupere.”

Diálogo nos conflitos

“Diferentes conflitos têm diferentes formas de solução. Acho que o Estado Islâmico deve ser combatido severa e ferozmente, porque ele não está disposto a se comprometer. Eles querem exatamente o que declaram: matar todos que não acreditam em Alá. Não existe um espaço para diálogo com essas pessoas. Devemos combatê-las. Entre Israel e Palestina, no entanto, ainda há – talvez não por muito tempo – espaço para diálogo. A maioria dos palestinos não pensa em nos matar e os israelenses não pensam em erradicar os palestinos. Porém, nós temos uma disputa profunda e trágica de coisas básicas. E, quando se trata disso, é claro que a guerra não vai ajudar. Nós já tentamos isso. Já vimos esse filme tantas vezes no último século. Começamos a entender – mesmo os mais teimosos dentre os israelenses e palestinos – que não podemos solucionar o problema exterminando uma das partes. Temos que conversar uns com os outros. É uma ideia muito dolorosa para os fanáticos, mas é o único caminho para conquistar vida para ambos os povos. Do contrário, estamos condenados para uma vida de guerra. E uma vida de guerra não é realmente vida: é apenas sobreviver catástrofe após catástrofe.”

Empatia e literatura

“Quando você se permite sentir simpatia e empatia, mesmo com o seu inimigo, você não pode mais ser um fanático. Os fanáticos são pessoas herméticas: eles não irão permitir que nada da realidade interfira nas suas crenças e valores. Então, eles vivem em sua própria bolha. De certa forma, eles não vivem na realidade, algo que consiste em muitos pontos de vista, muitas abordagens e atitudes. Quando você se permite entender o que significa ser outra pessoa, esse é o coração da literatura. Seja para os escritores ou leitores, isso é a habilidade de se colocar no lugar do outro, e não se defender da existência do outro. Gostamos de achar que somos muito amigáveis e esclarecidos, mas, na verdade, acho que todos temos um instinto desde muito jovens, a não sermos invadidos por outros, de ficarmos entrincheirados na nossa única vida, único gênero, única linguagem, única visão de mundo, único senso de humor. Quando estou escrevendo, tento fazer exatamente o oposto. Tento ser invadido por tantas opções de vida possíveis, até dos meus inimigos. Já escrevi sobre muitos outros. Sobre um contador de histórias palestino que tenta fugir da ocupação israelense através da sua imaginação; sobre um menino, filho de dois sobreviventes do holocausto, que escuta sobre o monstro nazista; já escrevi através da perspectiva de um cachorro; de um comandante nazista de campo de extermínio. Eu não quis me proteger de todas essas infinitas opções de existência que temos. E existe um prazer, uma doçura em permitir-se parar de se proteger, de parar de ser apenas um. É tão chato ser apenas um.”

 Importância do humor

“No momento que se usa humor, significa que, de repente, você verá as coisas de uma perspectiva diferente. É possível se distanciar e fazer graça de algo que parece muito importante e presunçoso. Se você é uma pessoa que vive em uma tirania ou em regime despótico terrível e consegue parar e rir da situação, rir de si mesmo, imediatamente você não é mais vítima da situação. Por um segundo, foram quebradas as regras do poder e da hierarquia. É por isso que os regimes despóticos sempre lutaram contra humoristas. Eles entendem que os humoristas são capazes de mostrar as rachaduras na superfície do regime despótico.”

 Tecnologia e literatura

“Hoje, tantas coisas competem com o tempo livre de uma pessoa comum que não é fácil chegar para alguém e dizer para que invista o seu mundo emocional em um livro. Livros são exigentes, a literatura é exigente. A mídia de massa, por exemplo, dá a ilusão de realidade. Um livro força você a encarar a si mesmo sem ilusões, de maneira sóbria. Para mim, é natural que existam cada vez menos leitores. Mesmo assim, o que sempre permanecerá é a necessidade humana de ouvir e contar histórias. Isso é primordial, um desejo, um instinto. Nós fazemos a nossa vida de acordo com as histórias que contamos e que lemos. Somos formulados por histórias. E, assim, mesmo que tenhamos menos e menos leitores, sempre haverá um leitor. As crianças leem se têm um modelo de leitura, se elas enxergam seus pais lendo. Quanto menos os pais leem, menos crianças irão ler. E, quando elas se tornarem pais, não serão um bom exemplo de leitura para seus próprios filhos.”

Sociedade do espetáculo

“A maior parte da nossa vida é formulada pela mídia de massa. Ela é o elemento dominante que nos dá histórias. Mídia de massa é uma expressão cunhada por sociólogos nos anos 1930. E existe algo complicado relacionado a isso porque pensamos que o termo significa a mídia que está conectada com as massas. Mas não: é a mídia que torna o ser humano em massa, em uma multidão através da vulgaridade, da superficialidade, da hipocrisia e da forma como torna cafona tudo aquilo que ela toca. Da morte ao amor, tudo é cafona. E, por causa disso, a literatura se torna tão importante. A literatura é um caminho muito forte para retornarmos para a nossa face humana. Ela permite e nos encoraja a insistir nas nuances do nosso ser. Quando milhões de pessoas estão lendo uma revista popular ou assistindo a um reality show, elas estão, em suas cabeças, sendo coladas em uma coletividade hipócrita, um bom e doce mainstream. Se centenas de pessoas estão lendo um livro ao mesmo tempo – e vamos presumir que é bom livro –, o livro alcançará cada uma delas de uma forma diferente. Permite que diferentes contextos naveguem pelo seu conhecimento, sua consciência e dão palavras para as coisas que, do contrário, estão mudas. Por isso acho que a literatura tem um papel tão importante – e até moral – hoje, porque nos proporciona outra sensibilidade para lermos histórias humanas.”

 

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