Autópsia da cidade – Por Eduardo Vieira da Cunha

Toda a grande cidade é também um grande cenário, um lugar de representação. Por esta razão, arte e cidade nutrem afinidades. A “guerra do spray”, acontecida recentemente em São Paulo, onde o prefeito João Doria tenta implantar o programa “cidade limpa” é apenas um sinal desta relação conturbada. Pode-se argumentar que pichador não é artista. Mas o que estes jovens da periferia fazem é buscar este grande dispositivo que é a parede branca e imaculada, vista por todos, e seu poder de sedução.

A pichação é uma espécie de contra-arte, mas é um reflexo da periferia que busca espaço político. Suja a cidade, mas é um espaço de resistência, que chama a atenção para estas ruínas contemporâneas, e para o mal que aflige as grandes cidades. A metamorfose dolorosa da cidade em megalópole, os dramas da urbanização descontrolada, as profundezas mórbidas e sombrias da periferia, tudo isso se transforma em espaços de representação do campo da representação, seja na contraparte, na arte consagrada e nos artistas contemporâneos.

A ruína da cidade, além de evocar a passagem do tempo, é um sinal de resistência: a obsessão pela eterna juventude, como bem nos contrapõe Giselle Beiguelman, evidencia a complexidade do transitório, dos espaços abandonados como o centro das grandes cidades como São Paulo. Os empreendimentos imobiliários pasteurizados, a arquitetura que nada identifica, as cirurgias plásticas aplicadas na paisagem, acabam transformando as cidades em algo sem identidade própria. Caminhamos por avenidas de São Paulo como se estivéssemos em Tóquio ou Chicago.

Os artistas são os primeiros a ver estes espaços críticos e seu poder de sedução. De um lado, a inquietante estranheza dos surrealistas. De outro, o otimismo tecnológico. Na encruzilhada da violência e da destruição, diante da ameaça de exclusão, a cidade exprime a crise profunda da sociedade. Crise da cidade, crise da sociedade humanista. A arte e os artistas mostram estes dramas, suas vítimas, como os desempregados, os sem-teto, os acidentes, as agressões, enfim esta esquizofrenia contemporânea. A arte simplesmente retrata este imaginário, com suas angústias e desejos. Ela realiza uma autópsia no corpo da cidade grande.

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