Congresso pode corrigir a si próprio e ao STF também

Diz o artigo 2º da Constituição brasileira que  o Legislativo, o Executivo e o Judiciário são poderes da União, independentes e harmônicos entre si.Parece uma formulação cristalina que dispensa interpretações. Não é.

Os automóveis, os ônibus, as motocicletas nas ruas das grandes cidades também são independentes e harmônicos entre si. Sim, até que entrem em rota de colisão e se choquem.

Os poderes da República, como estamos vendo com frequência exagerada nos últimos tempos, também só são independentes e harmônicos quando não chocam entre si.

A exemplo dos veículos nas ruas, quando os poderes se chocam é preciso decidir quem tem razão. Nesse instante a harmonia e a independência se evaporam. A partir daí a funcionalidade do sistema passa a depender da política.

No campo da política não existe certo e errado absolutos. Existem interesses pessoais e partidários. Por interesse, ateu vira zwingliano e crente renega seu ser supremo. A política se move mais por traição às convicções e alianças do que por fidelidade a elas. Sempre foi assim e o Brasil de agora não é exceção.

Mas é difícil aceitar esse estado de coisas especialmente quando o Legislativo e o Judiciário se chocam e, para evitar o caos, passam a se relacionar politicamente.

Ilustra isso agora o julgamento pelo pleno do STF (Supremo Tribunal Federal) de uma ação que institui expressamente a necessidade de autorização do Congresso quando a justiça dá de prender, restringir a liberdade ou suspender o mandato de um parlamentar que ainda não foi condenado e nem pego em flagrante delito penal.

O STF pode prender ou suspender o mandato de um parlamentar antes de uma condenação definitiva, no que se define tecnicamente como medidas cautelares?

Não existe resposta absolutamente certa ou errada a essa pergunta.

Basta ler a Constituição e ver o que está escrito lá, diz alguém cansado dessas pelejas infindáveis. Infelizmente não basta consultar a Constituição.

Lá está escrito que todos são iguais perante a lei, mas lá também está escrito que os parlamentares no exercício do mandato, ao contrário de nós outros, não são assim tão iguais perante a lei, usufruindo de certos privilégios, entre eles o de serem julgados apenas pelo STF, mesmo se acusados de crimes comuns, e o de só poderem ser presos em flagrante ou depois de condenados.

Para os que acreditam em um mundo ideal, sem conflitos, uma saída seria alterar o texto da Constituição para estabelecer que os “poderes da República são onipotentes” —ou seja, cada um, na sua área de competência, seria incontrastável.

Funcionaria bem? Sim, mas exigiria que uma inteligência suprema resolvesse o que os estudiosos da lógica chamam de “Paradoxo da Onipotência.” Um exemplo duradouro desse paradoxo vem das elocubrações dos monges medievais, aqueles mesmos que discutiam sobre “quantos anjos podem se equilibrar na cabeça de um alfinete.”

Esse pessoal lançou à posteridade a seguinte questão, que nunca foi satisfatoriamente respondida: “O ser onipotente, Deus, pode criar uma rocha tão pesada que nem ele consiga carregar?”

Em outra versão: “Deus pode criar uma cela tão inexpugnável da qual nem ele possa escapar?”

Muitos cabeças poderosas tentaram dar solução a esse paradoxo, mas só conseguiram mesmo sair pela tangente, sendo a resposta mais frequente a de que esse tipo de indagação é irrelevante para a teologia.

Se os poderes da República fosse onipotentes, estaríamos paralisados por diversas versões do paradoxo:

“Pode o Congresso fazer uma lei tão perfeita que nem o Congresso possa revisar?” ou “Pode o STF tomar uma decisão tão certa que nem mesmo o STF possa revogar?”

Seria ilógico e disfuncional. Por isso, em sendo independentes e harmônicos, os poderes podem recorrer a política quando se chocam.

Em  uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, em São Paulo, em 2015, o ministro do STF Roberto Barroso foi confrontado por Joaquim Falcão, professor de Direito da FGV-Rio, com a pergunta:

“Quem vigia, corrige ou pune um ministro do STF quando ele erra?”

Barroso deu exemplos do que considerava decisões erradas do STF —entre elas a manutenção do monopólio postal da União na era da internet e a derrubada, por inconstitucional, da “cláusula de barreira”, em 2006.

Barroso lembrou também que o ministro Eros Grau, sucedido por Luiz Fux no STF em 2010,  consertou, em um artigo de revista especializada, um voto dado por ele e do qual arrependeu.

“Antes tarde do que nunca”, disse Barroso que em seguida respondeu a Joaquim Falcão: “O STF pode ser corrigido pelo Congresso.” O corolário óbvio é : “O Congresso pode ser corrigido pelo STF.”

Graças à política, o Congresso pode corrigir a si próprio e o STF também.

O ministro Barroso foi voto vencido na decisão do plenário do STF, na 4ª feira, dia 11, que não aceitou a aplicação de medidas cautelares a parlamentares processados mas ainda não condenados.

Isso está escrito na Constituição, mas na visão do ministro Barroso nem a Constituição pode se revestir da onipotência sem incorrer no resistente paradoxo.

Fonte: Euripedes Alcântara/ Poder 360

Foto: Felipe Sampaio/SCO/STF

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