Desvendando as moedas virtuais

A valorização estratosférica de bitcoins no ano passado chamou a atenção de muita gente para o fenômeno das criptomoedas. Cotada a US$ 1 mil em janeiro de 2017, a moeda virtual chegou a custar US$ 20 mil em dezembro, e nesse meio tempo fez com que investidores no mundo todo – dos principiantes aos mais escolados – corressem para garantir um lugar nessa corrida pelo ouro. As atraentes possibilidades de lucro propagadas na imprensa e nas redes sociais deixaram até mesmo os mais céticos (ou desinformados) com uma pulga atrás da orelha, pensando que talvez estivessem perdendo alguma coisa.

Junto com as notícias, brotaram as dúvidas. Como isso funciona? Quais são as aplicações? E como pode mesmo ter algum valor? Aliás, há alguma coisa além de especulação nessa história?

A maioria dessas perguntas tem, sim, uma resposta, mas o fato é que ainda há muitas indefinições sobre o futuro das criptomoedas. Ou criptoativos, como prefere chamar Fernando Ulrich, economista-chefe de criptomoedas do Grupo XP, considerado um dos maiores especialistas do Brasil no tema. Ele ajudou a equipe da Revista VOTO a desvendar esse universo ainda bastante nebuloso, que une tecnologia e informação em rede a um princípio de liberdade econômica que pode ter um impacto gigantesco no sistema financeiro atual.

Bitcoin, blockchain e mineração

Criado em 2008, o bitcoin é uma moeda digital descentralizada, o que quer dizer que existe apenas em códigos e não é controlado por nenhum banco ou governo. Assim como uma ação vendida na bolsa, seu valor se explica pelo bom e velho princípio da oferta e da procura. Pode ser usado para comprar produtos e serviços físicos – embora esse tipo de aplicação seja ainda muito restrito – e também trocado em casas de câmbio por outras moedas.

“O uso principal hoje, sem dúvida, é como ativo especulativo”, esclarece Fernando Ulrich. Segundo ele, o princípio mais importante para distinguirmos esse tipo de “dinheiro eletrônico” das demais formas é justamente a descentralização. “É uma propriedade que emerge da própria estrutura da rede, que é toda P2P (peer-to-peer, ou ponto a ponto). Não há um servidor ou uma autoridade central, e a própria segurança do sistema é garantida por diversos atores. Qualquer um pode se tornar um agente que provê força computacional para manter o sistema rodando”, explica.

É nesse sistema complexo concatenado em blocos de informações – chamado de blockchain – onde está talvez o maior potencial inovador dessa tecnologia. O blockchain funciona como um livro contábil que registra todos os movimentos já realizados com esses criptoativos. “É essa estrutura que torna o sistema tão seguro”, afirma Ulrich. “As transações são públicas e transparentes e tudo que ocorre nesta rede está a todo tempo sendo auditado e verificado por todos os participantes”, diz.

Como essa imensa base de dados está registrada em milhares de computadores, de usuários que atuam por meio de recompensas, ela fica praticamente impossível de hackear. E é por isso que grandes companhias, como IBM, Walmart e JPMorgan, uma das instituições financeiras mais poderosas do planeta, têm usado essa tecnologia como experimento para novas formas para compartilhar e proteger informações e transações. Uma das possibilidades do blockchain é a realização de transferências internacionais com muito mais velocidade.

Por toda a sua segurança e confiabilidade, o bitcoin é comparado ao ouro como reserva de valor. E pelo serviço de garimpo que esses usuários fazem na validação das transações e no registro no blockchain, eles são chamados de mineradores. A mineração de criptomoedas, portanto, é todo o trabalho despendido na operação desse sistema. “É o coração da rede, o que mantém ela pulsando”, resume Ulrich.

Muito além do bitcoin

O software utilizado para a criação das criptomoedas é de código aberto (open source), ou seja, qualquer pessoa que entenda o processo pode criar um desses novos ativos. O bitcoin foi o primeiro e é o mais conhecido, mas hoje já existem cerca de 1.600 moedas digitais registradas. Nem todas têm o mesmo objetivo ou funcionalidade. Muitas são criadas por startups como uma alternativa à emissão de ações e algumas são classificadas como tokens, espécie de títulos que podem eventualmente ser oferecidos como serviços.

“Algumas têm propostas, funções e qualidades técnicas bem distintas, outras nem tanto, são apenas cópias do bitcoin. Muda-se um ou outro parâmetro, dá-se um nome novo e lança-se ao mercado das criptomoedas”, ressalta Ulrich. No entanto, há criações realmente inovadoras, como é o caso do Ethereum, considerada por muitos a maior invenção da humanidade desde a internet. A plataforma pode se tornar a nova Apple, segundo um dos próprios fundadores da gigante do Vale do Silício, Steve Wozniak.

Criada em 2014, ela vai muito além do sistema monetário. Por meio de contratos inteligentes, se propõe a levar a segurança e a descentralização do blockchain a qualquer sistema possível, podendo interagir com sistemas sociais, financeiros, interface de jogos e outros tantos. O impacto previsto não pode ser mensurado por uma simples definição técnica, mas, a grosso modo, o Ethereum tem a capacidade de tornar obsoleta qualquer instituição que conhecemos, levando consigo milhares de funções realizadas hoje em dia pelos seres humanos.

A moeda do Ethereum, o Ether (ETH), serve para pagar as operações e aplicações que são realizadas em sua rede. Diferentemente do bitcoin, que tem sua emissão pré-estabelecida em 21 milhões de unidades, não há limite de mineração de ETH, embora o processo vá se tornando mais difícil ao longo do tempo.

Com o sucesso da Ethereum nesse “gerenciamento” de aplicações descentralizadas, tornaram-se cada vez mais comuns os ICOs (Initial Coin Offering, ou Oferta Inicial de Moeda). É o correspondente ao IPO (Initial Public Offering) do mercado de capitais, quando as ações de uma empresa são vendidas na bolsa de valores pela primeira vez, e tem sido utilizado por muitas empresas para levantar fundos para o financiamento de projetos.

Como não há regulação nesse processo, os ICOs se tornaram uma maneira convidativa para que golpes clássicos como o pump and dump ou o Esquema Ponzi fossem reproduzidos. Há casos de empresas, como a Bitconnect, que ganharam muito dinheiro – bilhões – em pouquíssimo tempo se aproveitando desse entusiasmo dos investidores para manipulá-los com informações falsas e promessas de enriquecimento rápido.

É uma bolha?

A valorização de 1.500% do bitcoin em 2017 por si só explica essa euforia dos investidores. A procura pela moeda, e o interesse por criptoativos no geral, é estimulado ainda por uma gradual abertura do mercado. Ano passado, o Japão legalizou o bitcoin como meio de pagamento e a Bolsa de Chicago iniciou a negociação de contratos futuros da moeda. Todo esse crescimento também acende o sinal de alerta e levanta uma questão: trata-se de uma bolha?

“Até pode ser”, reflete Ulrich, dizendo que nem sempre é fácil determinar quando estamos em meio a uma bolha especulativa. “Independentemente de ser ou não, ou de estarmos em um período de bolha, não significa que não tenha nada de valor na tecnologia. Pode haver um excesso, mas não há ausência de valor”, completa.

Na avaliação dele, esse temor sobre um possível colapso das criptomoedas se assemelha àquele criado no início dos anos 2000, com a bolha da internet. De fato, muitas empresas quebraram quando ela estourou, mas muitas sobreviveram, se fortaleceram e hoje estão entre as maiores corporações do planeta. E a internet – a tecnologia por trás dessas empresas –, bom, nem se fala.

Em mais de uma oportunidade, o presidente do Banco Central do Brasil, Ilan Goldfajn, atacou as moedas virtuais por sua excessiva volatilidade e pela possibilidade ainda de serem utilizadas para o financiamento de atividades ilícitas. No balanço de final de ano, em 2017, disse que esse tipo de “subida vertiginosa” representa a “típica bolha e pirâmide”, e que a instituição não deve dar suporte a isso.

Para Ulrich, esse temor das autoridades é natural, dado o impacto que a tecnologia pode causar ao sistema financeiro tradicional em um futuro próximo. Como toda inovação, avalia, traz ameaças, riscos, mas também oportunidades.

“Os criptoativos não estão restritos ao uso especulativo. Têm aplicações e desdobramentos que vão muito além da obtenção de lucro. E que podem realmente ser determinantes para o futuro não apenas do sistema financeiro, mas da economia, do mercado e da sociedade”, diz o especialista da XP.

Debates sobre regulação

Todos esses pontos de interrogação que as criptomoedas colocam geram também discussões sobre a regulação do sistema. Para os entusiastas, qualquer restrição iria contra o próprio princípio de liberdade econômica que a tecnologia traz. Os mais cautelosos, no entanto, sugerem que a falta de normas claras tornam esse um terreno suscetível não apenas a uma especulação desenfreada, mas também à proliferação de atividades criminosas, como tráfico, lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo.

“Qualquer tecnologia – qualquer – pode ser utilizada para fins ilícitos ou para o bem”, pondera Ulrich. “A regulação em si não vai conseguir impedir isso”, completa. Para ele, o que é necessário é um esclarecimento maior das autoridades sobre a aplicação de regras já existentes no contexto das transações de criptoativos.

“O que precisa são orientações que possam trazer mais segurança jurídica e previsibilidade para quem está empreendendo e investindo no setor”, diz. “Não precisamos de novas regras. Regra é o que não falta no nosso país, a questão é saber como elas se aplicam”, defende.

Fernando Ulrich mais uma vez relaciona o fenômeno ao início da internet, quando havia muita desconfiança do mercado em relação ao seu verdadeiro sentido e valor. Muita gente na época usava a rede para fins ilícitos, segundo ele. “Poucas empresas renomadas arriscariam a sua reputação para vender em um local onde qualquer um poderia acessar em qualquer lugar do planeta. Mas aos poucos as pessoas foram percebendo o valor que tinha uma rede aberta, conectada, que poderia ajudar e até permitir a criação de novos negócios”, compara.

A tecnologia da blockchain, para ele, é algo que veio para ficar e que vai impactar positivamente o mercado, permitindo, além de segurança e agilidade, mais transparência a todas transações. “Isso está no centro das operações, o que torna o ambiente pouco convidativo para atividades ilegais. Como não há regulação e ainda é pouco entendido pelo mercado em geral, e pelas pessoas, há quem tenha a ideia que seja utilizada majoritariamente para fins ilícitos. Não é verdade”, enfatiza.

Atenção na hora de investir

O alerta para quem estiver interessado em investir em criptoativos, em primeiríssimo lugar, é ter em mente os riscos que esse mercado apresenta. Há uma percepção de valor crescente e uma tecnologia inovadora na validação de todas as transações e aplicações, mas há também inúmeras incertezas sobre o futuro dessas moedas.

A dica fundamental é responsabilidade. Não saia por aí investindo qualquer quantia que possa comprometer seu patrimônio ou liquidez. É também muito importante conhecer bem o sistema para utilizá-lo com segurança, orienta o economista-chefe de criptomoedas do Grupo XP, Fernando Ulrich. “Tome todas as precauções de custódia com esses ativos. Uma barra de ouro você pode guardar no seu cofre, debaixo do colchão ou no banco”, indica.

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