O desafio de diversificar caminhos

O destino do Brasil depende das estradas rodoviárias. Essa assertiva curta e de sentido propositalmente dúbio é corroborada pelo fato de que mais de 62% da matriz do transporte de cargas se concentra no rodoviário, transitando pelos caminhos e descaminhos de asfaltos nem sempre bem pavimentados. A vasta malha chega a transportar 75% de toda a produção agropecuária do país, e o resto é escoado pelas vias marítima, aérea e ferroviária.

De acordo com a Confederação Nacional do Transporte (CNT), um dado torna a situação ainda mais crítica: 60% das estradas brasileiras têm estado regular, ruim ou péssimo. Sendo assim, o destino da economia do país estacionou em uma encruzilhada de má qualidade, cuja densidade foi exposta na paralisação atônita do país diante da recente greve dos caminhoneiros.

Diversos fatores despontam desse grave gargalo brasileiro. A dependência dos combustíveis fósseis, a carestia do petróleo e a falta de braços para o governo manter a qualidade da malha rodoviária formam uma conjunção de fatores que conduzem a um impasse.

Durante a greve, esse nó da infraestrutura do transporte brasileiro mostrou um quadro que flertou com o caos. Bastou uma dezena de dias de paralisação para o país derrapar próximo de um abismo. Ocorreu o desabastecimento decorrente da falta de transportes e, como consequência, o aumento nos preços de produtos essenciais que, para chegar aos mercados, precisam escorrer pelas rodovias de um país com dimensões continentais.

Tornou-se impositiva uma reflexão sobre por que chegamos a tal encruzilhada e como poderemos um dia sair dela. Os brasileiros, despertados para o assunto em razão da ameaça de caos que viveram, perguntam-se: por que não temos a alternativa de modais como hidrovias e ferrovias? Por que apenas uma pequena parcela das nossas mercadorias trafega em trens ou embarcações, sem falar no transporte aéreo?

Investimentos insuficientes

Claudio Frischtak, da consultoria internacional de negócios Inter.B, atesta que há claro desequilíbrio na infraestrutura de transportes no Brasil. Os investimentos, segundo ele, são “de má qualidade”, havendo falta de integração entres os diferentes modais. A solução seria “investir mais e melhor”.

Frischtak sustenta que o Brasil precisa investir entre 4% e 4,5% do Produto Interno Bruto (PIB) durante os próximos 20 anos para modernizar toda a sua infraestrutura. O país, no entanto, registra nos últimos três anos investimentos equivalentes a 2,2% até 2,4% do PIB nessa área. O consultor defende participação mais intensa da iniciativa privada no setor.

Além da opção questionável pelo modal rodoviário em detrimento das outras possibilidades, o investimento público brasileiro em transportes chegou próximo a 2% do PIB apenas em meados da década de 1970. Em 2016, esse índice havia despencado para 0,16%.

Problema histórico

Há uma clara falta de planejamento, e os modelos de concessão que poderiam suprir a ausência de investimentos públicos despertam pouco interesse. O avanço das rodovias como alternativa para o escoamento se deu especialmente nos anos desenvolvimentistas do governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), com seu grande impulso à indústria automobilística. Isso depois de o país ser comandado por Washington Luís, com seu altamente simbólico lema “governar é abrir estradas”, entre 1926 e 1930. A opção rodoviária era vista como o atalho rumo à prosperidade. O Brasil, até Juscelino, tinha uma malha ferroviária predominante no escoamento da produção. Essa mudança gradual para o predomínio rodoviário se consolidou ainda mais na ditatura militar (1964-85).

Resultado: enquanto no Brasil a malha rodoviária supera 60% dos transportes de carga, nos Estados Unidos esse percentual é pouco superior a 40%, e na China é de 30%, informa o instituto Ilos. As ferrovias, por exemplo, servem hoje apenas para o transporte de minérios de ferro e alguns produtos agrícolas. O Brasil tem mais de 1,7 milhão de quilômetros em estradas, enquanto as ferrovias não chegam a 30 mil quilômetros.

Com essa malha ferroviária para cargas e passageiros, de acordo com comparação feita pela Agência Brasil, nosso país está atrás até da Argentina. Com um território de 2,7 milhões de quilômetros quadrados (o equivalente à soma dos territórios do Amazonas e do Pará), o país vizinho conta com 36.917 quilômetros de trilhos. Já os Estados Unidos dispõem de uma malha de cerca de 294 mil quilômetros. Mesmo a Índia, com um território equivalente a quase metade do brasileiro, totaliza mais de 68 mil quilômetros de trilhos.

Visão sustentável

Paula Soares Pinheiro, executiva da FM Logistic, lamenta as barreiras do país para a “intermodalidade”. “Infelizmente, o Brasil possui uma histórica dependência do modal rodoviário para o transporte de cargas. A falta de investimentos e de uma visão mais estratégica no decorrer de muitos anos levou a nação ao estrondoso percentual de mais de 60% das cargas transportadas por caminhões”, aponta Paula Soares. Ela complementa:

“O Brasil tem baixa eficiência no transporte de cargas devido ao desbalanceamento da matriz de transporte. Há poucas alternativas ao modal rodoviário e muitas barreiras para a intermodalidade”.

Mas fica a pergunta, especialmente depois da crise dos caminhoneiros: como romper essas barreiras? A executiva responde: “Em um país com dimensões continentais, a maneira para superar o gargalo da dependência rodoviária é investir e estimular a utilização de modais alternativos, como cabotagem, transporte via ferrovias e até mesmo a utilização das hidrovias como forma de escoamento”.

Paula Soares destaca outro aspecto que deve ser considerado pelo país: o meio ambiente. “Ao tirar os caminhões das estradas para longos percursos e substituindo pela utilização do modal ferroviário, por exemplo, não teríamos somente um ganho na redução dos riscos com acidentes nas estradas e uma logística mais eficiente. Seríamos também um país responsável no que tange à sustentabilidade referente à emissão de CO2 na natureza”, expõe.

Os dados fornecidos pela executiva da FM Logistic são de grandes dimensões e, ao mesmo tempo, preocupantes. Conforme ela, “cem caminhões emitem cerca de 72 toneladas de CO2, contra a emissão de cinco toneladas por duas locomotivas com capacidade para transportar cem contêineres”. Conclusão: considerando um percurso de mil quilômetros, é possível fazer uma redução de até 93% na emissão de gases poluentes.

Paula faz coro com outros especialistas ao propor que, para romper o atual sistema, será necessário o apoio dos governantes e da iniciativa privada. São necessários investimentos em malhas ferroviárias “eficientes e sustentáveis”. para que “a logística do Brasil se torne mais competitiva e sustentável, quebrando assim os paradigmas de uma cultura enraizada na utilização do transporte rodoviário”.

Proteção contra paralisações

Natalie Unterstell, mestre em Administração Pública pela Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, acrescenta ainda que “a diversificação de modais de transporte de cargas reduziria a vulnerabilidade do país a paralisações setoriais” como a ocorrida neste ano. Natalie é diretora do Infra2038, movimento que defende o avanço da infraestrutura para o aumento da produtividade e da competitividade do Brasil.

Ela defende que “novos investimentos venham do setor privado, já que não há espaço no orçamento público”, repetindo algo que parece ser uma súplica emitida por todos os especialistas no assunto. “É fundamental diversificar a matriz energética dos transportes, diminuindo a participação do petróleo e fomentando fontes limpas, como a elétrica. Isso vai reduzir a dependência dos humores do preço internacional do petróleo e da taxa de câmbio”, assegura.

Enfim, a conclusão é de que não faltam motivos, que vão dos ecológicos aos de logística e segurança institucional, para que o país reveja o caminho tomado pela via rodoviária. Com diversificação e adoção de outras modalidades alinhadas, vamos evoluir para um sistema mais racional. É o que os brasileiros esperam há muito tempo.

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