O poder em berço esplêndido

A principal notícia política do último ano é, sem dúvida alguma, a escolha popular de um verdadeiro outsider para o cargo mais importante da nação. Ainda mais se não nos esquecermos de que esse eleito, ainda em meados do período eleitoral, não recebia mais do que o desprezo de poderosos da política, da mídia e das finanças. Como um descapitalizado e achincalhado cavaleiro solitário superou os grupos que se revezavam no poder havia 30 anos? Aliás, como alguém que passou esse mesmo período no seio do poder conseguiu posicionar-se como outsider? E como esse improvável líder fez-se presidente, mesmo sem angariar grandes apoios em sua empreitada de nadar contra a maré? Enfim, por que Jair Bolsonaro venceu?

Embora a disputa presidencial contasse com diversos postulantes com chances reais de vencer, pode-se dizer que havia apenas duas espécies de candidatos. De um lado, o isolado militar da reserva. Do outro, todos os demais presidenciáveis, que representavam, de uma forma ou de outra, a continuidade de um esquema político de alianças suspeitas, motivadas por interesses escusos e movidas à compra (direta ou indireta) de apoios (não apenas no meio político, mas também no empresarial, no midiático, no artístico e até mesmo no intelectual). Cargos, emendas e propinas aqui, empréstimos facilitados da Caixa e do BNDES ali, verbas de publicidade acolá, incentivos fiscais e bolsas de estudo por todos os lados.

Porém, para a surpresa de muitos, o lado dos poderosos saiu derrotado. Para entender como isso aconteceu, é preciso olhar para as candidaturas do até então status quo. Falamos de alianças que envolveram os maiores e mais influentes partidos, capazes de mobilizar uma gigantesca base de apoio em todos os municípios brasileiros e de garantir latifúndios de tempo na TV. Falamos de influência garantida sobre os maiores colégios eleitorais do país, governados por esses partidos há décadas. E mais: apoio de todo o mercado financeiro nacional, além da assessoria dos mais conceituados marqueteiros, de estrategistas de primeira linha e de agências premiadas.

O resultado dessa inigualável confluência de forças, porém, não poderia ser outro: uma estrondosa, acachapante e vergonhosa derrota eleitoral. Isso mesmo: tanto poder, no atual contexto brasileiro, não é um trunfo, mas um fardo. Os grandes derrotados do recente pleito foram o poder e seus donos. E aqui está incluído o PT, é claro, mas com uma pequena distinção em relação às outras candidaturas da política tradicional: o ocaso da esquerda veio também na esteira do desprezo do eleitorado por populistas e demagogos, que, de dentro de luxuosos blindados, cercados por seguranças fortemente armados, abrem suas Louis Vuitton para jogar níquéis furados ao populacho.

De qualquer forma, o que restou do último pleito presidencial é que, no Brasil atual, ostentar poder político talvez seja o primeiro passo rumo a uma derrota eleitoral. E a candidatura vencedora endossa essa tese: uma campanha presidencial simples, mais barata do que a de muito deputado estadual, feita praticamente toda via redes sociais, desde uma maca de hospital ou de dentro de casa em boa parte do período eleitoral. Transmissões toscas, repletas de gambiarras, sem roteiro, sem técnica, sem pretensão. Um tempo de TV que mal permitia falar o nome completo do candidato. Do empresariado, num primeiro momento, apenas o desprezo. Dos partidos políticos, idem.

E o resultado dessa incapacidade de Jair Bolsonaro de somar forças com os poderosos não poderia ser outro: uma vitória histórica. Em verdade, logo saberíamos que essa incapacidade era uma inegociável disposição do próprio candidato para rechaçar todo e qualquer apoio político-eleitoral tradicional no seu entorno. Desejoso de governar sem amarras, deu as costas ao toma-lá-da-cá e apostou alto no respeito às reais demandas populares, focadas em combate ao crime e à corrupção. Agindo em consonância com a revoltada e desesperançosa população, não apenas obteve uma conquista improvável, da qual todo o contexto político duvidou e debochou por anos, mas também logrou eleger centenas de outros políticos que surfaram na sua onda – de governadores a bancadas inteiras nos legislativos estaduais, passando por um Congresso ampla e historicamente renovado pela força desse candidato.

Bolsonaro deu de ombros ao poder constituído – e o povo percebeu. Foi ignorado pelos poderosos de terno e gravata, pelos de microfone nas mãos e pelos das malas recheadas. E o povo viu isso. E viu também que, ao contrário dos populistas de sempre, o capitão reformado não diz o que as pessoas querem ouvir, mas o que elas gostariam de falar. Foi assim que Bolsonaro constituiu-se no maior fenômeno eleitoral de nossa democracia.

 

Populares aguardam na praça dos três poderes, a cerimônia de posse do Presidente eleito, Jair Bolsonaro em Brasília.

No contexto do poder político e, especialmente, midiático, praticamente ninguém percebeu o que estava acontecendo. Faltou inteligência à intelligentsia. Da mesma forma que a classe política deu às costas aos verdadeiros anseios populares, a intelectualidade e os especialistas da imprensa (quem forma e quem informa a população) deixou de buscar entender e retratar a realidade fidedignamente, dedicando-se exclusivamente àquilo que lhes ordenou Karl Marx: revolucionar a realidade. O problema (para eles) é que, enquanto se imiscuíam militar em vez de entender e informar, a realidade seguiu o seu rumo. Nela, a população se foi cansando do populismo messiânico da esquerda, que promete direitos sem-fim a todos.

Cada direito implica em um dever, de modo que, se todos têm direitos e ninguém têm deveres, todos acabam ficando sem direito algum. E o Brasil é prova disso: num país repleto de minorias barulhentas e exigentes de carinhos estatais, a maioria ficou sem os direitos mais triviais, incluindo o mais fundamental de todos, o direito à vida – do qual nenhum brasileiro tem garantias reais. E isso o povo não apenas viu, mas sentiu, vivenciou. No caos cotidiano de um país entregue à bandidagem e à corrupção, o povo se cansou e buscou uma alternativa de fora do círculo dos poderosos. Foi por isso que Bolsonaro venceu.

Bolsonaro venceu porque estava atento aos anseios da população real, do Brasil real – não do Brasil lacrador, nem do Brasil militante das salas universitárias e das redações de jornal e TV. No Brasil real, o povo se cansou de ouvir promessas de gás de cozinha baratinho enquanto vê seus familiares morrendo em assaltos, suas casas sendo tomadas pelo tráfico e seus empregos sumindo, por força de um esquema de corrupção sem precedentes, capaz de unir quase toda a classe política. Quase. Bolsonaro não se aliou às quadrilhas que assaltaram o Brasil por três décadas. E o povo viu isso.

Bolsonaro venceu porque percebeu que o gigante acordou, enquanto a classe política preferiu ficar dormindo. Aos trancos e barrancos, o gigante acordou – mais por necessidade do que por maturidade, diga-se. O povo se viu obrigado a despertar de sua letargia, pois o sonho populista virou pesadelo. A conta dos direitos e privilégios sem-fim chegou e alguém tinha de pagá-la. Bolsonaro entendeu isso tudo e, nos últimos quatro anos, manteve-se fiel a seus princípios enquanto tocava uma pré-campanha extraoficial que fazia muito barulho por onde passava, ao arrepio do silêncio dos grandes veículos de comunicação.

Durante os mesmos quatro anos, a população foi às ruas diversas vezes. De forma intermitente, é claro, mas com demonstrações inequívocas de total desprezo pela classe política e pelos poderosos em geral. Estes, por sua vez, entocados nas torres de marfim do poder, preferiram viver o sonho dos gabinetes acarpetados onde não há crise, não faltam recursos e a segurança é garantida. Seguiram dormindo em berço esplêndido, ao som das caixas registradoras e à meia-luz dos recônditos noturnos em que tramavam o avanço de suas tropas e quadrilhas.

O povo viu isso tudo. E o resultado não poderia ser outro. Se dará certo, somente o tempo dirá. Até lá, torçamos para que os derrotados – nas urnas, nas cátedras e nas redações – também despertem e comecem a trabalhar para tirar o Brasil do buraco em que eles próprios nos meteram.

Por Mateus Colombo Mendes, Escritor e analista político

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