Por trás das montanhas de dinheiro

Com os R$ 51 milhões encontrados no início de setembro de 2017 em um apartamento em Salvador (BA), atribuídos ao político baiano Geddel Vieira Lima, seria possível realizar gastos superiores à despesa anual de 3.926 municípios brasileiros. Isso mesmo. Cerca de 70% das cidades do Brasil têm um orçamento menor do que a montanha de reais e dólares transformada em símbolo da desfaçatez da corrupção no país. Além de assombro, a apreensão despertou uma curiosidade: como foi possível reunir um volume tão expressivo de dinheiro vivo tendo em vista as regras de monitoramento à circulação de moedas em espécie no Brasil?

De longe, foi a maior apreensão de dinheiro vivo suspeito na história das operações de combate à corrupção em solo brasileiro, bem à frente de outras descobertas milionárias (veja quadro). A imagem da sala do apartamento pertencente ao engenheiro Sílvio Silveira, e supostamente emprestado a Geddel para funcionar como caixa forte clandestino, impressiona: são oito malas de viagens e oito caixas de papelão recheadas com notas de R$ 50 e R$ 100, totalizando R$ 42.643.500,00, além de mais US$ 2.688.000,00. A Polícia Federal da Bahia montou uma operação apenas para transportar e contar o dinheiro. Chegar à cifra final levou 14 horas de trabalho, recorrendo a sete máquinas que automatizaram a triste contabilidade.

Ainda não se sabe a origem e como foi possível juntar a fortuna. Consultadas pela revista Voto para falar sobre a apreensão, tanto a unidade da Polícia Federal de Salvador quanto a de Brasília não quiseram detalhar o que encontraram no depósito clandestino. Usaram como justificativa a necessidade de preservar a investigação, já que a tarefa agora é buscar os laços entre o material apreendido e outros esquemas. Segundo policiais federais com experiência neste tipo de apuração, a hora é de “seguir o dinheiro”. No caso, encontrar a origem da dinheirama – e há ferramentas para refazer o percurso e seguir o rastro. No dia da descoberta, os investigadores chegaram até o local a partir de uma denúncia em decorrência da Operação Cui Bono, que em latim quer dizer “a quem beneficia”. Atualmente preso, o ex-ministro de Michel Temer é suspeito de, entre outras atividades ilícitas, ter recebido R$ 20 milhões em propina quando foi vice-presidente da Caixa Econômica Federal (CEF), entre 2011 e 2013, ainda no governo Dilma Rousseff.

Mas como refazer este caminho? De acordo com as normas em vigor, qualquer saque em dinheiro superior a R$ 100 mil precisa ser comunicado, o que aumenta o mistério sobre como foi possível chegar a um montante tão expressivo. A linha do controle começa nos bancos onde o valor é retirado, passa pelo Banco Central (BC) e chega ao Conselho de Controle das Atividades Financeiras (Coaf), um órgão ligado ao Ministério da Fazenda. São as chamadas Comunicação de Operação em Espécie, automáticas sempre que ultrapassam o valor. Desde 1998, o país conta com um sistema de prevenção à lavagem de dinheiro, que, se não impediu o trânsito de recursos provenientes de atividades criminosas, pelo menos criou embaraços. No caso do tesouro escondido de Geddel, se os envolvidos usassem como tática fragmentar os saques em valores próximos aos R$ 100 mil para burlar o sistema de controle, seriam necessários mais de 500 saques para atingir o montante. Mais difícil de fazer e mais suspeito do que se não houvesse o limite.

Conforme o Coaf, mesmo os saques menores de R$ 100 mil podem ser informados pelas instituições bancárias, quando no contexto de alguma investigação ou quando os bancos suspeitarem de alguma coincidência ou frequência. Também há uma intensa troca de informações entre o órgão, os ministérios públicos e a Polícia Federal, com o objetivo de analisar movimentações atípicas, ampliando o cerco. “O sistema financeiro passou a detectar recursos ligados ao crime. Assim, muitos criminosos têm evitado ingressar com esses recursos nos bancos, dando preferência a transportá-los e acumulá-los em espécie, exatamente para que não sejam rastreados”, explica o presidente do Coaf, Antônio Gustavo Rodrigues, que defende a existência de uma limitação ainda mais rigorosa para tentar asfixiar a circulação clandestina, algo na linha de impedir compras em dinheiro vivo em valores acima de R$ 30 mil.

No período entre 1999 a setembro de 2017, foram 13,6 milhões de comunicações de operações ao Coaf, tanto as de saque em espécie quanto outras transações consideradas duvidosas, que também precisam ser informadas por agentes que lidam com questões financeiras. É o caso da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que regula o mercado de ações no Brasil e é obrigada a repassar os registros de movimentações fora do padrão. O número de ocorrências aumenta a cada ano. Em 2017, já foram efetivadas 820 mil comunicações de transações de saques em espécie superiores a R$ 100 mil. No ano passado, o BC catalogou mais de 1,1 milhão de saques com estas características.

Técnicos do Coaf lembram que, mesmo que o sistema regule os saques a partir de um determinado patamar, é importante considerar que existe um volume expressivo de dinheiro vivo com origem ilegal, que nem chega a passar pelo sistema financeiro nacional. São as fontes sombrias das operações de corrupção. Uma destas vertentes de dinheiro vivo, como exemplo, estaria no roubo de carros fortes, cujos valores abasteceriam a lavagem de dinheiro, o caixa 2 e os pagamentos de despesas sem rastro. Também o tráfico de drogas e o contrabando fazem girar quantidades expressivas de moeda, à margem dos registros contábeis oficiais e das transações financeiras do sistema bancário sob controle do BC. De acordo com um levantamento da Câmara dos Deputados de agosto de 2016, apenas o narcotráfico movimenta R$ 15,5 bilhões por ano no Brasil.

Vale destacar que ninguém é impedido de circular ou acumular dinheiro vivo no Brasil. Pode, em algumas circunstâncias, ser obrigado a prestar informações quanto à origem, principalmente quando a posse estiver associada a alguém investigado por formação de quadrilhas e práticas escusas, como é o caso de Geddel. “Ninguém pode ser acusado de nada ao fazer qualquer pagamento em dinheiro vivo em real. Existem restrições para saques e movimentações suspeitas, mas é mais fácil controlar combatendo a corrupção”, propõe Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil. Para ele, tanto o Coaf quanto a Receita Federal têm mecanismos eficientes de combate à movimentações financeiras, mas enquanto o país não mudar a cultura de leniência com a corrupção, os resultados serão precários.

Uma das sugestões de melhoria apresentada por Galdino é reduzir ainda mais o valor da maior nota em circulação, que atualmente é a de R$ 100. Se fosse de R$ 20, por exemplo, acumular os cerca de R$ 42 milhões apreendidos no apartamento com as digitais de Geddel exigiria 2.132.175 notas, complicando ainda mais a logística de acúmulo e armazenamento. Nos EUA, as notas mais altas foram tiradas de circulação em 1969, justamente para inibir a ação do crime organizado, no governo do então presidente Richard Nixon. Ficou a de US$ 100 como a top de linha. Quase 50 anos depois, o Banco Central Europeu decidiu que irá interromper, no final de 2018, a impressão de notas de 500 euros, com o mesmo propósito, permanecendo a de 200 euros como a mais elevada a ser impressa. Comparando o caso brasileiro as duas zonas monetárias, a nota mais alta de real disponível nem é tão alta assim.

O sistema de vigília está em constante aperfeiçoamento. Para constranger ainda mais as operações na boca do caixa, o BC determinou que, a partir de janeiro de 2018, o valor base para a comunicação de operações em espécie seja de R$ 50 mil. A redução pela metade decorre de uma das ações pensadas no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla) para 2016, mas que só agora entra em vigor. O Enccla é um mutirão institucional que articula uma rede de combate à corrupção, a partir da ação integrada de agentes estatais. O grupo é composto por 77 órgãos públicos estaduais e nacionais e atua desde 2003. De acordo com Sérgio Busato, delegado regional de Investigação e Combate ao Crime Organizado da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, a medida vai deixar ainda mais rigoroso o controle. “A atual lógica do sistema financeiro inibe, mas o saque em espécie sempre precisa de um melhor controle, pois é um meio para afastar a origem dos recursos ilícitos do destinatário final”, garante Busatto, que participou das ações do Enccla no ano passado em Brasília.

O dinheiro vivo atribuído a Geddel estimula um debate a respeito dos mecanismos de fiscalização da Receita Federal. Muito embora o órgão vigie a renda, a movimentação financeira e a construção de patrimônios formais, os auditores também estão de olho nos sinais exteriores de riqueza. No caso do dinheiro que navega nos subterrâneos, a vigilância enfrenta como barreira o fato de, obviamente, os recursos ilícitos não constarem nas declarações anuais de renda. Como explica Busatto, o dinheiro vivo acumulado ainda não se transformou em algo que possa ser observado pela Receita. Um olhar sobre a prestação anual de contas ao Leão permite, no entanto, detectar algumas inconsistências. Quando concorreu pelo PMDB ao Senado Federal em 2010, pleito no qual saiu derrotado, Geddel declarou R$ 5,9 milhões em bens – cerca de 11,5% do valor encontrado no apartamento. A lista do IR continha imóveis, automóveis, frações de fazendas e recursos financeiros. Chama a atenção no rol a existência de um depósito em dinheiro em conta corrente no Bradesco no valor de R$ 1,36 milhão, o bem mais valioso declarado. Sim, R$ 1,36 milhão parado na conta bancária, sem remuneração, sendo corroído pela inflação.

Também não deixa de ser curiosa a confissão de posse de uma linha telefônica feita por Geddel, um resquício tributário. É anterior às privatizações a época em que, no Brasil, ter um telefone era considerado patrimônio a ser declarado no Imposto de Renda. O político baiano ignorou o atual acesso quase universal e continuou contabilizando o telefone fixo como se ainda fosse negociável. No caso, a linha dele entrou na declaração de bens por R$ 1,1 mil. Na mesma eleição, o irmão de Geddel, Lúcio Vieira Lima, que conquistou uma vaga de deputado federal pelo mesmo PMDB, comunicou à Justiça Eleitoral um patrimônio de R$ 7,7 milhões, com uma estrutura de bens bastante semelhante a de Geddel. Lúcio inclusive declarou duas linhas telefônicas. Incrivelmente, por valores diferentes: uma por R$ 1 mil e outra por R$ 1,8 mil. Vasculhar as declarações de bens pode ajudar a destrinchar a investigação sobre a montanha milionária. Mas a principal linha de apuração, no quesito origem, é observar as notas encontradas e os seus números de série, pois seria possível rastrear de onde saíram e comparar minuciosamente com os registros feitos no Coaf.

Mesmo quem está acostumado com investigações de lavagem de dinheiro fica impressionado com o tamanho da apreensão e busca explicações. O delegado Busato, por exemplo, enxerga no episódio um sinal de que a sensação de risco pode ter levado alguns grupos a adotar novas táticas. É elucidativo fazer um raciocínio econômico para tentar entender a decisão de juntar tanto dinheiro. Com a proximidade da eleição de 2018 e o aperto nas regras de financiamento, é possível interpretar o tesouro de Geddel a partir de uma lógica eminentemente keynesiana. Para o economista John Maynard Keynes (1883 -1946), em momentos de crise e incerteza, os agentes econômicos tendem a acumular – “entesourar” – dinheiro como forma de proteção, reduzindo despesas e investimentos. Assim, as incertezas com relação ao financiamento de campanha, por conta do avanço da Operação Lava-Jato, podem ter levado o grupo político a adotar um comportamento bem capitalista: acumular o dinheiro – neste caso, ilícito – para voltar a irrigar o sistema em um momento oportuno.

Embora ainda possa ser aperfeiçoada, a atuação de órgãos repressores como a Receita Federal e a Polícia Federal é vista como eficaz. Galdino, da Transparência Brasil, entende que o principal trabalho a ser feito é cultural. É o mesmo pensamento da promotora Luciana Asper, do Ministério Público do Distrito Federal que coordena a ação do Enccla responsável pelo aumento da prevenção. Para ela, a Operação Lava-Jato proporcionou esperança, “mas ainda estamos nos primeiros cinco minutos do jogo, não ganhamos nada”. Luciana entende que se criou um clima de vitória, mas é necessário seguir investindo na prevenção primária, ou seja, no ser humano, ampliando a eficiência do sistema de combate, com o endurecimento da legislação e mecanismos de transparência. “As estruturas são falhas, precisamos aumentar a eficiência, o que é um princípio da administração pública. Ainda estamos com dificuldade para acessar os políticos”, admite Luciana, para quem a sociedade precisa se transformar em “embaixadora da honestidade”.

A montanha de dinheiro atribuída a Geddel é um retrato surreal do ponto a que chegou o desvio de dinheiro público no Brasil, mas a imagem está longe de ser engraçada. No relatório de 2016 em que fotografa a corrupção no mundo, a Transparência Internacional flagrou, entre outras conclusões, uma piora na posição brasileira – com queda da 76ª para a 79ª posição – e também fez um alerta que precisa ser sempre lembrado: “O conluio entre empresas e políticos subtrai das economias nacionais bilhões de dólares que foram canalizados para beneficiar poucos às custas de muitos. Esse tipo de corrupção sistêmica e em larga escala viola os direitos humanos, impede o desenvolvimento sustentável e alimenta a exclusão social”. Segundo a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), a corrupção corrói R$ 145 bilhões ao ano. O custo Geddel não é brincadeira.

Apreensões milionárias

Os R$ 51 milhões encontrados em Salvador são a maior apreensão em dinheiro vivo da história do Brasil. Veja o ranking da dinheirama clandestina (em valores da época da apreensão:

R$ 51 milhões

Em notas de reais e dólar, acondicionados em oito malas e oito caixas, o dinheiro atribuído ao político baiano Geddel Vieira Lima levou 14 horas para ser contado.

R$ 12,8 milhões

Operação Paraíso fiscal encontrou em caixas de leite, em 2011, um montante milionário em vários endereços de auditores da Receita Federal suspeitos de participarem de um esquema.

R$ 2,1 milhões

Localizados na casa do megatraficante colombiano Juan Carlos Ramirez Abadia em agosto de 2007, em um condomínio de luxo na cidade de Aldeia da Serra (SP). O dinheiro estava com relógios, joias e outros objetos de luxo.

R$ 1,8 milhão

Em reais e dólar foram encontrados pela Polícia Federal duas semanas antes do primeiro turno das eleições de 2016, com assessores ligados ao PT. O episódio ficou conhecido como os aloprados do PT.

R$ 1,3 milhão

Em março de 2002, o valor foi encontrado em São Luís (MA), na sede da empresa Lanus, pertencente a então governadora do Maranhão, Roseana Sarney.

Por Alexandre Elmi

Foto: crédito Divulgação/Polícia Federal

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