A remontagem da democracia

Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Pronunciada desde 5 de outubro de 1988, a sentença tem se mostrado insuficiente para assegurar uma democracia plena no Brasil. O regime consagrado por uma sociedade que no século 20 amargou longas ditaduras está em situação de emergência no século 21. A democracia representativa, em vez de empoderar o cidadão, transformou política em carreira e estatais em balcões de negócios. Criou um ecossistema partidário com dezenas de siglas focadas mais em oportunidades de cargos e na própria prosperidade do que em cumprir sua missão constitucional. O descaminho, que resultou em escândalos como o do Mensalão e o do Petrolão, aprofundou o abismo entre a classe política e a sociedade. A falta de identificação alimenta a perigosa desconfiança sobre a democracia. É alarmante o número de brasileiros que nela não mais acreditam.

Entre os 18 países da América Latina monitorados pelo Latinobarómetro, estudo de opinião pública que aplica anualmente mais de 20 mil entrevistas, o Brasil é o penúltimo em apoio ao regime democrático: em 2016, em meio a uma das mais graves crises políticas na nação, o índice despencou para 32%, um percentual superior apenas ao da Guatemala (31%).

Os números gritam que esta democracia não serve mais, uma verdade admitida pelo próprio meio político. O desafio está na mudança do modelo. Dependendo da linha adotada, a insatisfação popular pode ainda se agravar. A reforma política discutida no Congresso tem dois desfechos possíveis: servir à sociedade ou aumentar ainda mais a concentração de poder na casta partidária.

“A recente crise política escancarou as fragilidades de nosso sistema eleitoral e representativo, dominado por mecanismos viciados”, escreveu o advogado, pesquisador e mestre em ciências sociais Sandro Ari Andrade de Miranda no artigo A crise da democracia representativa e a reforma política. “Como resposta para a crise, o tema da ‘Reforma Política’, que mais adequadamente deveria ser chamado de Reforma Eleitoral, que estava adormecido no Congresso desde a revisão constitucional de 93, e que vem sendo aplicado em nosso país a conta-gotas, virou tema corrente no debate político.”

A questão antes era recuperar a democracia, consolidada com a Constituição de 1988. Três décadas depois, o país começa a enxergar que não basta obtê-la, o importante é que ela tenha qualidade. O Brasil passa por um processo semelhante ao ocorrido em outros países após o fim da Guerra Fria e a expansão da democracia liberal em todo o mundo quando um empolgado Francis Fukuyama chegou a projetar o “fim da História”, uma teoria revogada pelos fatos. A ameaça à democracia retornou em outras formas, como observa Larry Diamond na recém-lançada 2ª edição da Coletânea da Democracia.

“Há diversos motivos para preocupação”, alerta. “Um deles tem sido a significativa aceleração de colapsos democráticos, incluindo recentemente a Turquia, a Tailândia e Bangladesh. Outro é o fato de a qualidade e a estabilidade da democracia terem diminuído em diferentes países em processo de desenvolvimento ou pós-comunistas, incluindo as Filipinas. Um terceiro ponto é o avanço geral do autoritarismo – tornando-se mais repressivo e controlando a sociedade civil e a mídia. Além disso, e por fim, a performance da democracia deixou a desejar em locais consolidados – como a Europa, o Japão e os Estados Unidos.”

A indagação sobre o futuro da democracia pautou o 30º Fórum da Liberdade, em 10 e 11 de abril, no Centro de Eventos da PUCRS,  em Porto Alegre. “O sistema político é resultado de duas coisas: a qualidade dos jogadores e as regras do jogo”, resumiu o economista Eduardo Giannetti em sua palestra. “No Brasil, as regras do jogo levam o Executivo a ficar refém de uma base no Congresso montada não por afinidade pragmática, e sim fisiológica.”

Um dos obstáculos é o excesso de siglas. “Hoje temos 28 partidos com cadeira no Congresso”, observou. “Eu gostaria que fossem apenas quatro ou cinco e que a base de sustentação do Executivo tivesse conteúdo pragmático, e não uma expectativa de ganhos na partilha do butim.”

Participante do mesmo painel, Pedro Malan (ministro da Fazenda no governo FH) acrescentou que o grande número de partidos enfraquece a coesão do Congresso. “No Brasil, ganhar a eleição não garante governabilidade”, ressaltou. “É preciso uma reforma política que fortaleça o Congresso.”

“O futuro da democracia é o poder local”

Uma das estratégias por Giannetti sugeridas para desidratar o fisiologismo é promover a “cidadania tributária”, o dinheiro do imposto fica onde ele foi gerado. “Quando o dinheiro parar de ir para Brasília para depois voltar, vai tirar boa parte do oxigênio do parasitismo do Congresso”, previu. “Temos Brasília demais, e Brasil de menos. O futuro da democracia é o poder local.”
Em sintonia com a reorientação no caminho da receita,  o economista defende o voto distrital (o país é dividido em distritos eleitorais, e em cada um apenas um parlamentar é eleito).

Pelo relatório parcial da reforma política, tema de audiência pública em 10 de maio na Comissão de Reforma Política da Câmara, a lista fechada – que concentra ainda mais poder no comando dos partidos – será o mecanismo de escolha de deputados e vereadores nas eleições de 2018 e 2022. Pela proposta, a partir de 2026, o sistema passaria a ser misto: metade dos eleitos pela lista fechada e a outra metade pelo sistema distrital.
Ao acompanhar a audiência, o ministro-corregedor do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Herman Benjamin, disse não ter “grande simpatia” pelo sistema de votação em lista fechada elaborada pelos partidos. Ele prefere o sistema eleitoral misto, embora aceite as ponderações dos deputados de que seria inviável implementá-lo já nas próximas eleições, em 2018.

Benjamin apontou o financiamento das campanhas pelas empresas como a origem de boa parte dos males. Ele concorda com a criação de um novo tipo de financiamento para substituir o empresarial, proibido pelo Supremo Tribunal Federal.

“O relatório parcial de novo avança, quando reconhece primeiro que democracia tem custo, em segundo lugar que alguém tem que pagar, em terceiro quem tem que pagar de forma aberta, transparente, direta, somos todos nós, brasileiros.”

Não há consenso na forma, mas há na urgência de revisão. Do jeito que está, a democracia pode fazer uma vítima: a própria democracia. A advertência foi feita pelo presidente do Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Rodrigo Tellechea, na abertura do Fórum da Liberdade. “É o caso a República de Weimar”, exemplificou. Da boa intenção, sistema de governo negociado para recuperar uma Alemanha derrotada na I Guerra Mundial revelou-se uma armadilha, nociva a ponto de criar o ambiente onde despontou o regime nazista em 1933.

“A democracia não é um fim em si mesmo, não é apenas um conceito e, sim, uma conduta”, observou. “A democracia no Brasil precisa ser reinventada, transferindo mais poder ao indivíduo. A gestão pública vem acumulando responsabilidades, gastos e dívidas ao assumir controle de atividades que poderiam ser demandas da iniciativa privada.”

O momento é crítico, impõe uma revisão de conceitos, mas a nação está diante de uma chance de sair da crise melhor do que entrou. Larry Diamond vê  “motivos para acreditar que uma nova geração de cidadãos brasileiros mais exigentes, conectados e informados obterá, enfim, maior transparência e accountability da sua classe política”.

O preço de Weimar

O nome da República de Weimar vem da cidade em que em 1919 foi elaborada a nova constituição alemã, depois da I Guerra Mundial. Durou até o início do regime nazista, em 1933, e tinha como sistema de governo uma democracia representativa semipresidencial. O presidente da República nomeava um chanceler responsável pelo poder executivo. Ao receber um país derrotado pela guerra, os democratas acabaram sucumbindo a uma crise econômica marcada por hiperinflação inimaginável mesmo para padrão brasileiro e ao saudosismo de uma nação poderosa, nos tempos do imperador, o Kaiser Guilherme II. Esse ambiente lançou os fundamentos para Adolf Hitler inspirar a ilusão de um regresso ao passado imperial e antidemocrático da Alemanha e implantar o nazismo.

A reforma política em discussão

Algumas das mais polêmicas medidas debatidas na Câmara:

Voto em lista fechada – Nas eleições legislativas, o eleitor votaria apenas no partido, não no nome do parlamentar. Apurado o tamanho da bancada de cada legenda, proporcional aos votos recebidos em cada estado, os eleitos seriam determinados de acordo com uma lista ordenada pelo próprio partido. Uma das alegações é garantir o financiamento da campanha com dinheiro público, pois seria inviável controlar a distribuição de recursos a todos os candidatos. Porém, resulta em mais poder para os líderes partidários na composição do Legislativo

Financiamento misto de campanha – Para custear as eleições, a proposta prevê um novo fundo partidário, com 70% de recursos públicos e 30% doações de pessoas físicas aos partidos. Conforme o a proposta, para financiar as campanhas eleitorais, seria criado o Fundo Especial de Financiamento da Democracia (FFD), diferente do Fundo Partidário, que seria mantido. O FFD seria distribuído pela Justiça Eleitoral e financiaria todos os candidatos. Também seriam permitidas doações de pessoas físicas, com teto limitado a três salários mínimos.

Duração dos mandatos, fim da reeleição e “distritão” –  Os eleitos para presidente e governador em 2018 teriam mandato de cinco anos, e os prefeitos eleitos em 2020 teriam mandato de três. A partir daí, a cada cinco anos haveria eleições para os cargos Executivos.

Fim do cargo de vice – A proposta extingue os mais de 6 mil cargos de vice, com o objetivo de economizar recursos, diminuir o espaço de barganha política e aumentar o poder do Legislativo na linha de sucessão.

Cláusula de barreira – Em 3 de maio, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara admitiu o início do trâmite da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que, além de acabar com a coligação partidária nas eleições proporcionais (deputados e vereadores), cria a cláusula de desempenho, apelidada de cláusula de barreira. Caso aprovada a PEC, para ter funcionamento legislativo o partido precisaria ter ao menos 2% dos votos válidos, já em 2018, numa espécie de regra de transição, e a partir de 2022, o mínimo de 3% em pelo menos 14 unidades da federação (com no mínimo 2% dos votos em cada uma). O objetivo principal dessa iniciativa é reduzir o número de partidos. Somente quem cumprisse esses limites teria acesso a recursos do fundo partidário, direito à propaganda política gratuita no rádio e televisão e a usar a estrutura oferecida aos partidos na Câmara e no Senado. Estima-se que restariam 11 dos 28 partidos hoje representados por parlamentares na Câmara. No total são 35 registrados no Brasil e outros 56 aguardam oficialização junto à Justiça Eleitoral, o que elevaria para o número de agremiações quase uma centena (91).


Foto 1: Eduardo Giannetti

Foto 2: Rodrigo Tellechea

Foto 3: O monitor do apoio à democracia

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