SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO IDENTIFICADO

Novas tecnologias para identificar criminosos estão utilizando o reconhecimento facial em locais públicos. O sistema vem gerando uma polêmica: qual o limite ético para o bom uso dos dados coletados?

O ano é 1984. Em um futuro distópico, o mundo é dividido entre três países em constante conflito pelo poder. Na Oceania, o governo controla o pensamento da população, observando-a através de câmeras instaladas pelas ruas e dentro das casas. Sob a ideia de que “quem domina o passado domina o futuro; quem domina o presente domina o passado”, o líder Big Brother monitora os passos de seus liderados através do vídeo.

O parágrafo acima resume a obra-prima de George Orwell, 1984, lançada no final da década de 40. O livro retrata um universo em que a tecnologia é usada para a tomada do poder, em desserviço à humanidade. Setenta anos depois, o cenário retratado na ficção se torna, aos poucos, cada vez mais próximo da realidade – desta vez, porém, com a premissa de estar ajudando os cidadãos.

De smartphones a sistemas mais complexos e completos, diversos produtos já utilizam a identificação facial. Essas experiências se agregam ao conceito de Internet das Coisas (Internet of Things, em inglês, ou IoT), que desenvolve meios para tornar a vida mais cômoda e ágil.

De acordo com o relatório da Research and Markets, maior fornecedora de pesquisas de mercado, o segmento global de reconhecimento facial saltará de US$ 3,85 bilhões em 2017 para US$ 9,78 bilhões em 2023. As principais fabricantes de celulares já disponibilizam essa tecnologia em seus aparelhos. No entanto, algumas falhas já vem sendo apontadas. Gêmeos idênticos, por exemplo, conseguiram desbloquear o mesmo iPhone com o Face ID. A Apple informa que a chance de um erro desses ocorrer é de um em um milhão. Ainda assim, considerando a existência de 30 gêmeos para cada mil habitantes, o risco pode ser maior.

 

Segurança com tecnologia

Uma das aplicações que mais divide opiniões no mundo todo é a biometria através do reconhecimento facial – buscando trazer segurança em locais públicos. A ferramenta tem sido útil na qualificação de entradas, saídas, tráfego em ambientes e cercamento eletrônico. Mas muitos defensores da liberdade do indivíduo criticam a prática.

No Brasil, o reconhecimento facial já é uma tecnologia que participa do cotidiano de algumas capitais. Em Salvador/BA e no Rio de Janeiro/RJ, casos de apreensão de foragidos no Carnaval deste ano tiveram repercussão positiva. Os equipamentos utilizados são capazes de oferecer alta precisão na análise do perfil, conforme destacam Maurício Loeser e Lucas Arruda, diretores da empresa de tecnologia em segurança e comunicação DGT.

“As câmeras captam informações que são enviadas para uma central de controle, tratadas e analisadas por operadores. É possível identificar um perfil mesmo quando ele trocar a cor do cabelo, usar óculos, capacete ou ainda expressar alteração de temperamento, como irritação. Isso gera um alerta no software”, exemplifica Loeser.

No caso da Bahia, o foragido estava fantasiado com peruca e óculos, sendo reconhecido em meio a 460 mil foliões que passaram pelos festejos diariamente. As câmeras captam os pontos faciais que são transformados em algoritmos, gerando uma identidade biométrica. Esses dados são enviados para um banco, sob responsabilidade do poder estatal, que tem a listagem dos foragidos.

Outras funcionalidades do sistema incluem reconhecimento de carros clonados, coleta de dados na placa, monitoramento de pedestres em faixas de segurança, controle da coleta seletiva e auxílio em demais questões de mobilidade urbana. Para evitar a invasão e visualização de locais não autorizados, o software é capaz de mascarar prédios, residências ou afins, impedindo os operadores de infringirem a privacidade desses ambientes.

Para Marcela Joelsons, coordenadora da Área Cível do escritório Scalzilli Althaus, a falta de ética no uso da tecnologia de reconhecimento facial ocorre quando há monitoramento dos hábitos de vida e classificação de pessoas e grupos sociais de acordo com a avaliação de seus hábitos e riscos. Pesquisadora do tema de proteção de dados pessoais no Brasil e na Alemanha, Marcela destaca que esse tipo de infração pode ocorrer mesmo quando as imagens são usadas para fins de pesquisa, comércio, segurança nacional ou política públicas.

“A consequência direta dessa classificação é a discriminação ao acesso de bens e serviços, o que acaba por reduzir a autonomia das pessoas, sua capacidade de autodeterminação, suas oportunidades sociais e suas próprias chances de vida”, explica a especialista em Direito do Consumidor. A advogada destaca que o reconhecimento facial pode ter um potencial benéfico para a sociedade, como na identificação de terroristas em uma multidão, mas também há um lado maléfico. São situações que representam a diminuição da liberdade de expressão, da privacidade, do livre desenvolvimento da personalidade e da inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem das pessoas.

 

Regulamentações no uso dos dados

Marcela Joelsons reforça que ainda não há diretriz legal expressa que regule a matéria no Brasil. “Atualmente, existe um movimento de desenvolvimento de leis específicas regulando o tratamento de dados, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) [sancionada em 14 de agosto de 2018], que entrará em vigor em março de 2020. O reconhecimento facial estará contido no cenário global da regulação e proteção de dados”, aponta.

A LGPD abrange diversas situações presentes no uso do reconhecimento facial. O artigo 3º detalha que “aplica-se a qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados”.

Entretanto, conforme consta no artigo 4º, é permitido o uso de dados para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação e repressão de infrações penais. O tratamento de dados pessoais é regido por uma legislação específica, que deverá prever medidas proporcionais e estritamente necessárias ao atendimento do interesse público, obedecendo o processo legal, os princípios gerais de proteção e os direitos do titular.

Mesmo que não esteja em vigor, o cenário jurídico brasileiro possui um sistema de garantias individuais fundamentais, positivadas na Constituição da República, no Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor, no Marco Civil da Internet e em outras legislações. Segundo Marcela, apesar de não serem específicas, as leis aplicam-se diretamente a esses casos. Por isso, devem ser vistos como basilares em toda a relação entre empregador e empregado, fornecedor e consumidor, bem como das demais relações sociais.

Enquanto surgem novas ferramentas e tecnologias que interferem no dia a dia, ainda há questionamentos sobre o quanto é saudável o uso do reconhecimento facial para facilitar algumas atividades. Estaremos seguros que as informações coletadas irão para as mãos certas? Trata-se de uma discussão importante, sobretudo quando os dados pessoais são considerados a moeda do atual século. A discussão segue aberta, e a balança inclina-se constantemente.

Segundo Marcela Joelsons, do escritório Scalzilli Althaus, ainda não há diretriz legal expressa que regule a matéria no Brasil

Como é realizado?

1 – A câmera detecta os rostos humanos, captando os pontos nodais da face, como a distância entre os olhos, a largura do nariz e a forma das maçãs do rosto.

2 – Usando estas medições, gera um algoritmo que será enviado a um software de comparação.

3 – O sistema analisa as características dentro de um banco de dados e gera um percentual de similaridade do indivíduo.

4 – A empresa não detém os dados, eles ficam com o poder público.

5 – Em algumas versões, o software classifica temperamentos e gera alertas.

 

Como os países têm se posicionado quanto ao reconhecimento facial?

Rússia

No país que conta com câmeras até dentro dos carros as dúvidas sobre o uso indevido das informações pessoais por parte do governo são constantes. Apenas em Moscou são cerca de 170 mil equipamentos fornecendo imagens dos cidadãos à segurança pública. De acordo com o Departamento de Tecnologia da Informação da capital russa, o governo gasta cerca de 5 bilhões de rublos (US$ 86 milhões) por ano para manter seu sistema de vigilância com vídeo.

Austrália

O projeto Seamless Traveler, em andamento desde 2015, implementará biometria em aeroportos do país para que os passageiros possam embarcar sem precisar falar com ninguém. A novidade visa substituir o uso do passaporte tradicional por reconhecimento facial, leitor de íris e de impressões digitais. Com lei aprovada em 2017, a coleta de dados biométricos de cidadãos australianos e estrangeiros, incluindo menores, é permitida nos locais.

China

Com 200 milhões de câmeras espalhadas pelo país, o território asiático contém a maior quantidade de equipamentos. Foragidos são reconhecidos com tempo abaixo de 0,001 segundos em meio a grande públicos. Recentemente, o uso da inteligência artificial foi instalado em fazendas para detectar doenças e facilitar dia a dia dos produtores, prevenindo, inclusive, a expansão da peste africana, doença disseminada no plantel de suínos.

Estados Unidos

Desde 2017, o país está testando sistemas de reconhecimento facial para controlar a entrada e saída de pessoas do país, em alguns aeroportos. Chamado de Biometric Exit, o sistema pega uma imagem do usuário antes do embarque e combina tais informações com o visto e passaporte que o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos (DHS, na sigla em inglês) tem. Caso haja qualquer problema, a pessoa é retirada do voo antes da decolagem e pode ser proibida de entrar no país por pelo menos 10 anos.

Inglaterra

O serviço metropolitano de polícia de Londres vem testando desde 2016 uma plataforma de identificação de rostos. O discussão no país é sobre as tendência dos julgamentos de raça e origem por parte das autoridades. Durante a experimentação realizada em 2017, na final da UEFA Champions League, o sistema de vigilância identificou 2.470 possíveis criminosos no meio da multidão. Destes, só 173 foram corretamente identificados. O índice de erro foi de 92%.


ARTIGO: GUSTAVO GRISA

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