Turbulência bem-vinda no feminismo do século 21 – Por Marta Suplicy

Milenar e sistematicamente, às mulheres foram negados: educação, sexualidade, liberdade, opinião, voto, representação e mais tragicamente o direito a viver. Neste século 21, a batalha segue renhida, com questionamentos de grupos antes não incluídos e com a entrada da era digital. As novas possibilidades trouxeram conhecimentos, formas de expressão, mas também desinformação e mais preconceitos. Viver o feminismo por partes não tem ajudado em nada.

Há feministas brigando entre si e deixando de notar que, além de o movimento ter ampliado, uma grande conquista acaba de acontecer: agora, temos aliados. Sim, muitos homens. Isso é o novo. Assim como temos que nos alegrar – e não dar uma de Trump – por termos saído da jaula branca e hétero. Esse momento de desencontro e aparente desafinação será extraordinário, se conseguirmos não dispersar do foco maior: oportunidades, direitos e respeito para todas.

Aqui, no Brasil, a primeira onda feminista se deu a partir do século 19 e se  discutia o direito ao voto e à vida pública. Conquistamos o direito ao voto, em 1932 (século 20), mas isso não nos deu uma vitória por completo. Hoje, no Congresso Nacional somos apenas 10%, mesmo com a política de cotas de mulheres nas legendas dos partidos. Apresentei essa proposta em meados dos anos 90, vanguarda para a época: 30% de candidaturas reservadas às mulheres. Só recentemente, os partidos viram-se forçados a efetivar esse percentual, no entanto, sem oferecer formação política, estrutura de campanha e financiamento para as candidatas. Obviamente, mulheres continuam sem chances reais de serem eleitas.

No contexto da representação política, nós, deputadas federais e senadoras, estamos querendo aprovar (já o foi no Senado) uma cota de mulheres nas cadeiras dos legislativos. Seriam: 10%, 12% e 16% em três eleições seguidas. É uma ação afirmativa. O que se pretende é a diminuição das barreiras de acesso. Um dia não serão necessárias cotas, quando as condições de disputa forem em bases iguais.

A segunda onda feminista veio a partir dos anos 70, com o enfrentamento da ditadura militar no país. A mulher reivindicando valorização do seu trabalho, da liberdade sexual e lutando contra a violência nos diversos estratos a que o gênero é acometido. Houve ostensiva reação. Afinal, abertamente, as mulheres estavam “desconhecendo” seu lugar. O programa TV Mulher, na década seguinte, vem em consequência dessa ebulição na sociedade. Psicóloga e psicanalista, passei a apresentar um quadro de comportamento sexual nesse marco da TV brasileira. A resistência e o preconceito foram enormes. As senhoras de Santana exigiram a retirada do meu quadro do ar. A Rede Globo chegou a suspendê-lo; foi a pressão do público que assistia que o trouxe de volta.

Como deputada federal, também propus o primeiro projeto para o aborto em caso de gravidez de anencéfalos e outro para a parceria civil entre pessoas do mesmo sexo. Tabus. Foi um massacre. No entanto, as pessoas continuaram batalhando, sobretudo na Justiça por seus direitos, e eles vieram. Em 2011 (século 21), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu o direito dos casais homoafetivos à união estável; em 2012, o das mulheres na questão da gravidez de anencéfalos.
Ainda nos anos 90, tivemos a terceira onda do feminismo, envolvendo denúncias e discussões sobre as invisibilidades dentro do próprio movimento feminista. O tema das mulheres negras; o das trans. Cada segmento precisou dar seu grito, mas nesse gesto vieram as fragmentações no próprio movimento feminista. O que nos unia também passou a nos dividir.

Não rotulo como negativa essa desconstrução que emerge da terceira onda feminista. Vejo mais como uma ampliação positiva das mulheres interessadas e que, como qualquer movimento, produz turbulência frente ao aumento de trincheiras e disputas por prioridades. Cabemos todas. Porém, precisamos resgatar o sentido do feminismo e do que queremos: mulheres valorizadas e com oportunidades e direitos iguais aos dos homens. As discrepâncias das realidades que vivemos são gigantescas. Aí o desafio.

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