Um processo de 123 anos

Vira e mexe, repercute na imprensa a bizarra história do processo que tramita há 123 anos na Justiça brasileira. O imbróglio começou em 1895, quando a princesa Isabel solicitou, seis anos após a derrubada da Monarquia e a implantação da República, a reintegração de posse do Palácio Guanabara – na época conhecido como Paço de Isabel, ou Palácio Leopoldina –, no Rio de Janeiro. Em 1891, decretara-se a incorporação ao patrimônio público nacional do bem, adquirido por meio de dote e recursos do Conde D’Eu, marido de Isabel. Os representantes legais da família no Brasil se recusaram a entregar o edifício. O governo pediu posse à Justiça. E perdeu.

Em 23 de maio de 1894, um grupo de militares exaltados, em plena ditadura do Marechal Floriano Peixoto, ocupou o prédio. Apesar dos tempos, o Judiciário decidiu novamente em favor da família, mas o governo discricionário recusou-se a acolher a sentença. A família imperial, assim, começou sua ação de reintegração de posse. Dessa vez, o tema caiu nas mãos de um certo juiz Godofredo Xavier da Cunha, genro de Quintino Bocaiúva, um dos principais artífices da proclamação da República em 1889, que deu ganho de causa ao governo, como seria de se esperar – a magistratura federal fora instalada pela República, que concebera a dupla jurisdição, e os juízes federais eram nomeados pelo governo.

A família real recorreu ao STF, órgão criado pela República e que fora zurzido pelo ditador, que cassara três ministros e tivera cinco indicações recusadas pelo Senado, incluindo um médico e três militares, que rigorosamente nada tinham a ver com o Direito. Ficou famosa a sua frase “se os juízes concederem habeas corpus aos políticos, não sei quem lhes dará amanhã o habeas corpus de que necessitarão”, em referência ao remédio impetrado por Rui Barbosa em favor de oposicionistas detidos durante vigência do estado de sítio de 1892.

Bem, o processo da família real sumiu! Em 1946, quando parte dos descendentes voltou a se instalar no Brasil, apresentou-se um protesto, sob alegação de que a matéria, esquecida, não havia prescrito. Por via das dúvidas, em 1955, a família entrou com uma nova ação. Apenas em 1964 o processo de 1895 foi encontrado. Assim, as duas ações passaram a tramitar juntas. Nos anos 1970, discutiu-se longamente se a matéria estava ou não prescrita. Uma churumela sem fim.

Como uma ação judicial se arrasta por tanto tempo? É um pouco de tudo. Há certa dose de incompetência, assim como de má vontade, pois o processo ficou parado por 67 anos, numa movimentação entre o STF e o antigo TFR (Tribunal Federal de Recursos). Dizem que poderia ter sido “extraviado” ou mal arquivado – o que só acontece, é preciso dizer, por incompetência dos envolvidos, ou por vontade de amorcegar a coisa.

No passado, a Justiça esteve mais atrelada aos governantes, então, podia ser conveniente em certos contextos que algumas decisões se arrastassem. Não havia muita transparência, e os mecanismos de comunicação eram precários, de forma que decisões judiciais podiam se protelar por anos a fio. Além disso, na medida em que o tempo passa, as leis vão mudando, o que pode tornar o desfecho mais complexo. E não só as leis, pois tribunais são extintos e criados, como no caso do TFR, do STJ e dos TRFs.

Em favor do Judiciário, diga-se que sua produtividade hoje não é baixa – se bem que estatísticas do volume processual brasileiro só começaram a surgir de modo mais aprimorado depois da criação do CNJ. A partir de 2005, o órgão alavancou a modernização dos esquemas de gestão do Judiciário, dando-lhe também mais transparência e unidade. Mas há ainda muito a ser feito.

Por incrível que pareça, esse não é um caso tão isolado. O inventário do comendador Domingos Faustino Corrêa transitou na Justiça Comum do Rio Grande do Sul por 107 anos. Mas, aí, compreende-se que a origem do problema estava em grande parte num testamento ultra detalhista e confuso, lavrado pelo morto como se as leis tivessem caráter imutável. Ora, só a abolição da escravatura, em 1888, mudou a dinâmica do Direito Civil, deixando obsoletas, por exemplo, determinações testamentárias que previam condições a libertos.

Afinal, no caso em tela, o dote – fonte da maior parte dos recursos que permitiram a aquisição da propriedade discutida, erguida em 1853 – seria um recurso público ou privado? Independentemente dos argumentos jurídicos, do ponto de vista conceitual, as duas teses podem ser defensáveis. Porque novas ordens jurídicas estabelecidas por golpes e revoluções pressupõem também um direito de transição, entre dois polos. Assim, revolucionários podem entender que se o palácio foi comprado com dinheiro do Estado, então, uma vez consolidada a República, a ela pertença. Por outro lado, a nação e o Estado brasileiro devem muito à família real.

Dom Pedro II era Bragança, aparentado de Orleans e Bourbon, filho de uma Habsburgo – casa que chefiava o poderoso Império Austro-Húngaro. É evidente que isso ajudava no reconhecimento de um país em processo de organização, que abria canais diplomáticos. Príncipes e princesas não podem escolher casarem com qualquer um. Seus casamentos conformam alianças de Estado. A imperatriz Leopoldina fundou museus, trouxe ao Brasil cientistas de escol e a vasta imigração teuta, que revolucionou o país. Ela convenceu a Áustria a reconhecer a independência do Brasil. O seu bisneto, primogênito da princesa Isabel, Pedro de Orleans e Bragança, precisou renunciar ao direito de herança ao trono brasileiro para poder casar com uma condessa checa, a quem amava, porque a nobreza dela era de segunda grandeza. Já a primogênita deles, Isabel de Orleans e Bragança, falecida há 15 anos, tornou-se por casamento condessa de Paris. Seus filhos são herdeiros presumidos do trono francês. Então, por ironia, se tivesse havido uma restauração na França, como aconteceu na Espanha, uma brasileira poderia ter se sentado no trono de onde Maria Antonieta foi arrancada pela Revolução de 1789.

A proclamação da República foi um golpe de Estado detonado por uma quartelada. E não foi incruento, ou pacífico, como se contou por décadas nas escolas. Não por acaso, o comandante do paquete Alagoas, que transportou a família imperial expulsa em 1889, recebeu ordens de não tocar em nenhum porto brasileiro, pois se temiam sublevações militares e populares a favor de Dom Pedro II. Algumas de fato aconteceram, como em Santa Catarina e no Maranhão, mas foram esquecidas pela história. Entre 1889 e 1895, gente foi presa, políticos e jornalistas assassinados, jornais empastelados, uma excruciante guerra civil conflagrou os três estados do Sul, o Rio de Janeiro foi bombardeado, perdemos toda a nossa esquadra, um governo paralelo foi instalado em Florianópolis, houve inflação galopante, a moeda passou a valer 1/3 do que valia, negociatas e falcatruas se fizeram aos borbotões, alienaram-se terras públicas como nunca dantes. Muita gente enriqueceu às custas do sofrimento do povo. Os militares eram, desde 1850 a vanguarda da nação, porque defendiam a abolição da escravatura e a industrialização. Mas, ao chegarem ao poder, provocaram uma catástrofe. Não se administra um país complexo como se gere um quartel. Estamos até hoje pagando o preço daquela aventura.

O processo judicial de mais de 120 anos é uma face pitoresca da tragédia. Vejamos os catarinenses: depois de amargarem o massacre de 187 presos políticos na fortaleza de Anhatomirim, ainda tiveram de engolir o batismo de sua capital como Florianópolis, em homenagem ao ditador Floriano Peixoto, seu brutal algoz. A família imperial pôde contratar advogados para se defender, no caso do Palácio Guanabara, mas dos sertanejos chacinados em 1897 em Canudos não restou nem suspiro. Não fosse o monumental Os Sertões, de Euclides da Cunha, há muito já teríamos esquecido de sua desventura.

Eis um dos problemas dos golpes de Estado. Ao se pretenderem revoluções legítimas, fundam uma nova ordem jurídica, atropelando garantias e valores que antes eram referenciais, deixando corpos pelo caminho. Às vezes, precisa-se de várias gerações para que os efeitos de uma ruptura institucional possam ser purgados.

Por Gunter Axt

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