Bem-vindo, Brasil de muitas vozes

Parece que se passou muito tempo, mas foram apenas quinze anos. Ainda me lembro do verão de 2005, quando Hugo Chávez lotou o Gigantinho, e foi ovacionado defendendo o “socialismo do século 21”. Era uma época em que ainda se iniciava o ciclo de poder da esquerda, no Brasil. Hoje tudo isto soa banal, mesmo um pouco ridículo, mas à época definitivamente não era.

As coisas muraram, nesses anos todos. O poder danificou a esquerda. A soberba, a retórica excludente do “nunca antes nesse país”, a captura pelo poder econômico, o distanciamento progressivo da sociedade. A história todos conhecemos. O início do fim foi a onda popular de 2013, até hoje incompreendida. Seu drama final foi o impeachment, a retórica vazia do “golpe”, a prisão de Lula, a campanha sem estrelas e tons vermelhos, no segundo turno da eleição presidencial.

De um país hegemonizado pela esquerda, nos tornamos uma sociedade plural. Bolsonaro expressou, de algum modo, a força de novos movimentos conservadores, o voto evangélico, movimentos liberais, além de um difuso sentimento antissistema, do cansaço com as instituições e com a retórica tradicional da política, tão comum nas grandes democracias e terreno fértil para o populismo contemporâneo.

O motor desta transformação foi a revolução digital. As instituições, sejam partidos, sindicatos, mídia tradicional, simplesmente perderam o controle do jogo democrático. Os indivíduos ganharam poder com as novas ferramentas de informação, ocuparam as redes sociais, passaram a produzir informação, freneticamente, e fizeram uma revolução, ainda em curso, na democracia.

Muita gente não suporta tudo isto. Achei curioso, mesmo divertido, o simples horror cultural que uma figura como Bolsonaro causava em boa parte de nosso establishment intelectual.  Sujeito “vulgar”, como li dias atrás, de uma boa jornalista gaúcha, batizado no rio Jordão, dono de um humor incorreto, amigo de tipos como o pastor Malafaia, e, pior que tudo, um tipo assumidamente de direita.

Tipo curioso de elitismo. Bolsonaro, no fundo, é uma boa expressão do homem comum brasileiro. O tipo não afeito à retórica cifrada da classe média urbana intelectualizada e politicamente correta. Vem daí, em boa medida, o sucesso da tese do “risco democrático”, veiculada pela campanha do PT, nas eleições, e logo embalada pela academia devidamente engajada. Nessa visão, a pauta conservadora não é um produto da democracia, uma expressão da visão de mundo de brasileiros que pensam de um jeito diferente. Ela é a ameaça, o inaceitável, o “inominável”, como tantas vezes escutei, na campanha. O novo fascismo, o caminho para a democracia iliberal, como virou moda dizer em círculos de gente bacana.

Tudo isso me soa como dores do parto da nova sociedade plural brasileira. Uma sociedade feita de muitas vozes das quais eu discordo completamente, mas tomo como perfeitamente legítimas. O faço por uma razão muito simples: não sou o dono da verdade, tão pouco da democracia, da rua, da palavra, do acesso ao poder, do direito de qualquer um dizer o que se pensa.

Arrisco mesmo dizer que prefiro muito mais viver neste país diverso e complexo, do que naquele país tedioso, tipo samba de uma nota só, que ainda existia no início deste século que já vai longe.

 

FERNANDO SCHÜLER

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