Gustavo Franco: “É preciso tornar as reformas uma rotina”

Em entrevista exclusiva para a Revista VOTO, Gustavo Franco fala dos motivos que fazem as atuais reformas estruturais emperrar – ao contrário da que capitaneou, há mais de vinte anos: o Plano Real

Com a autoridade de quem foi integrante da equipe que formulou e implantou o Plano Real, o economista Gustavo Franco destaca que o governo Dilma Rousseff foi a maior aperto pela qual passou a moeda lançada em 1994: “mas serviu para mostrar a força do real, que se manteve apesar da dura prova de fogo”.

Mestre em Economia pela PUC-Rio e PhD em Harvard, é crítico ferrenho de governos populistas. “Na área pública você tem um bom momento quando consegue fazer coisas. Torná-las permanentes é uma segunda etapa mais difícil”, sentencia na entrevista a seguir, concedida para a VOTO no escritório da revista, em Porto Alegre, acompanhado do pré-candidato do partido Novo ao Governo do RS, Mateus Bandeira. Afinal, não há como não ouvir Gustavo Franco e não aprender algo sobre economia, investimentos, dinheiro, políticas públicas e governos.

A cabeça do economista de 62 anos parece que funciona em 24×7. Prova disso é que lançou recentemente o seu 15º livro, “A moeda e a lei” – um tratado de 800 páginas sobre a história do dinheiro no Brasil desde os anos 1930. Na obra, relata que o país é um caso único no mundo: foram nove trocas de moedas nesse período e, durante quase 15 anos, a inflação castigou o brasileiro passando de 100% a cada 12 meses.

O economista carioca trabalhou no governo federal entre 1993 e 1999, como secretário-adjunto de Política Econômica no período do presidente Itamar Franco e depois presidente e diretor da Área Internacional do Banco Central, já no governo Fernando Henrique. Na iniciativa privada, fundou a Rio Bravo Investimentos, que tem R$ 11 bilhões em gestão.

Em setembro passado, depois de 28 anos filiado ao PSDB, ingressou no partido Novo. Liberal, é a favor das privatizações, porque estatais custam caro e oferecem serviços ruins. A seguir, leia os principais trechos da entrevista.

O economista Roberto Campos dizia que “o Brasil está tão distante do liberalismo quanto o planeta Terra está distante da constelação Ursa Maior”. Nas últimas décadas, no caso do Brasil, essa distância diminuiu, aumentou ou vive num pêndulo eterno de idas e vindas?

A distância é volátil, mas ela diminuiu, sim. Acho que tem uma diminuída extraordinária no momento quando ele (Roberto Campos, 1917-2001) ainda estava vivo e atuante, e ele não acreditou no que estávamos fazendo. Desconfiava de nós, socialdemocratas do PSDB. Mas enxergava na equipe um núcleo diferente. E a gente acabou executando uma coisa que ele gostou muito de ver, percebeu que nós estávamos isolados dentro do PSDB, nos apoiou. Fez isso de uma forma muito interessante, pois ao mesmo tempo ele nos apoiava e falava que o Fernando Henrique era socialista, intervencionista. Isso, internamente, nos ajudava muito.

O Plano Real foi mais do que uma reforma monetária, foi uma mudança de cultura fiscal no Brasil. Para o senhor, como um dos pais do Real, por que tem sido tão difícil promover mudanças como aquela no Brasil?

Porque uma cultura não se muda de um dia para a noite, você precisa de um trauma, de um choque. E nesse nosso caso, foi uma espécie de demonstração prática de como funciona uma moeda estável, mecanismos de mercado, incentivos bem desenhados. A experiência da URV [Unidade Real de Valor, moeda provisória que deu origem ao real], nesse sentido, foi fabulosa. E mostra que as pessoas sabem fazer conta, que essas formas que a gente imagina que a economia funciona, baseadas em racionalidades, funciona. Que a teoria funciona, que não tem mágica. Um aspecto que precisa ser lembrado é o institucional. É muito comum na área pública você ter um bom momento em que consegue fazer coisas. Torná-las permanentes é uma segunda etapa mais difícil. No nosso caso, tratava-se de reconstruir a moeda. E ela, em boa parte, tem a ver com bancos. Então, tinha uma coisa junto do Plano Real que era fazer retornar ao Banco Central o monopólio de fazer, administrar a moeda. Naquele tempo nós tínhamos 36 bancos centrais, os 30 estaduais, mais os cinco federais e o Banco Central. Para ter só um, era preciso mudar toda a lógica de funcionamento dos federais e extinguir os estaduais. Esses, não dava para consertar. Hoje só temos o Banrisul e mais um, bem menor, que funcionam igual aos bancos comerciais, comuns, e por isso são controlados pela adoção do Princípio da Basileia, uma coisa que passa despercebida e foi importante para enquadrar Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil. Claro que nós precisamos pilotar essas instituições com gente. Mas quanto mais você trava institucionalmente o mau comportamento, mais ele fica sólido. Nem Dilma Rousseff, com os pilotos dos bancos federais, conseguiu estragar essa equação. E olhe que ela tentou.

Recentemente, em um evento da Revista VOTO, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, disse que o Brasil poderia voltar a um período pré-1994 de hiperinflação, caso as reformas não passassem. O senhor concorda com ele?

Não, não concordo. Acho que o descontrole fiscal que ele enxerga e, aí, com razão, se não passarem as reformas, não terá o formato de inflação. Ele terá o formato de endividamento explosivo. Não tem como, hoje em dia, o Estado patrocinar financiamento inflacionário como fez no passado. Então, o descontrole virá de outro jeito, com outro sintoma. E a gente já sente esse sintoma um pouquinho, que é a acumulação de dívida pública. Começa a pressionar juros e por aí vai. Esse tipo de tensão pode ficar incontrolável se a gente não der um jeito na situação fiscal. Não acho que a inflação volte, está tudo muito travado.

A Nova Matriz Econômica e os PACs provocaram algum efeito de médio e longo prazo na economia ou ficaram apenas no discurso?

A Nova Matriz era várias coisas: uma gestão macroeconômica irresponsável e incompetente. Mas no ponto de vista micro, era isso que foi consagrado pelo José Padilha como O Mecanismo. Isso era parte da mesma coisa: a tentativa de reinventar o capitalismo, as relações entre o governo e as empresas privadas. O que eles empreenderam foi um procedimento de capitalismo de quadrilha, cuja repercussão micro foi o escândalo do mensalão, do petrolão. Tudo isso é parte da mesma equação. Não é um acidente ter havido essa coisa que aconteceu na Petrobras, e justo na Petrobras, onde eles fizeram começar esse projeto de relacionamento entre o setor público e o setor privado, de capangas de um mesmo projeto político. E é isso que depois vimos e as instituições rechaçaram, esse tipo de organização política e social. Agora precisamos trabalhar nas cautelas institucionais para que isso nunca mais se repita.

A taxa Selic está em seu menor nível na história. Isso está tendo algum reflexo nos investimentos ou é preciso algo mais para que as empresas e os empresários investirem?

Acho que isso é parte do assunto. Os juros do crédito precisam cair também e o ambiente de investimento precisa estar adequado. Não é somente a taxa Selic que faz as pessoas se endividarem, assumirem riscos e começarem projetos de investimento. O ambiente geral da economia é ainda de muita incerteza. Uma parte da política pública macroeconômica está funcionando muito bem, conduzida pelo Banco Central. Mas não é a única. Com a situação fiscal instável ainda, é de se ter dúvida se o Banco Central conseguirá manter as coisas como estão no decorrer do tempo. E se a dívida pública entrar numa trajetória explosiva, a dívida pública vai subir.

Na época de eleição, todos os candidatos falam em reduzir impostos, mas depois não conseguem. Há algum exemplo no mundo que o Brasil pudesse copiar, de um país que reduziu impostos e, gradualmente, colheu crescimento real do PIB?

Muitos exemplos de ciclo político onde há aumento de gasto e redução de imposto, e no momento da eleição, para impulsionar a economia e agradar o mundo empresarial e, depois freio de mão nas duas alavancas. Isso tem. Isso é comum. Mas imposto é mais difícil de utilizar desse jeito. No mundo inteiro tem uma inércia muito grande. Imposto, quando sobe, para descer depois é uma encrenca. Uma vez que subiu, o gasto parece que alcança aquele patamar, e depois para trazer para baixo é mais difícil. A gente tem aqui muito que trabalhar em simplificar. Essa carga, desse tamanho, não precisava dar tanto trabalho para pagar as obrigações acessórias, o tempo que se gasta, são muitas complicações, não precisa ser tão grande. A nossa Receita tem momentos de brilho, como na declaração de Imposto de Renda. Quem já fez declaração americana saberá apreciar a simplicidade e facilidade de se fazer a declaração da pessoa física no Brasil. Mas em outras coisas, é um inferno.

O senhor filiou-se ao partido NOVO e vemos que existem indícios que mostram que o discurso liberal está cada vez mais próximo da população, tendo uma aderência que antes não havia. Quais as perspectivas nas urnas para um discurso mais liberal? Essa já vai ser uma eleição diferente das outras?

Parece-me que sim. Nós vamos ter mais redes sociais, engajamento direto da população nos debates de substância de temas de campanha. Não é só a televisão. A juventude, sobretudo, que está o tempo inteiro nas redes sociais, está constantemente debatendo temas de economia e política de um jeito que nunca aconteceu. Quando não havia essas ferramentas, o debate econômico entre os jovens era muito restrito. Agora, não. Está num patamar completamente diferente. Como isso vai repercutir no voto? Difícil dizer. Mas já é claro que tem uma atmosfera liberal no ar e um desejo de muitos candidatos de se identificarem com esse tipo de plataforma. Mesmo quem nunca teve nenhuma afinidade com esse tipo de ideia, começando por Michel Temer, que não apenas adotou ideias, como fez uma equipe na Fazenda, manteve no Banco Central gente liberal, pró-mercado e apostou nesse modo de fazer política econômica seu futuro político. A economia até que cresceu um bocadinho, não foi um deslumbre suficiente para retirá-lo da impopularidade em que se encontra. Mas fizeram um bom trabalho.

A candidatura do próprio Jair Bolsonaro tenta um verniz liberal ao chamar o economista Paulo Guedes para coordenar a área econômica. Quais seriam os efeitos de uma possível eleição de um candidato assim para o país, especialmente para a economia?

Políticos de outras preferências ideológicas muito frequentemente fazem aproximações táticas com os liberais. Fernando Henrique foi um deles e foi uma experiência muito boa. Pode acontecer, também, de termos agora candidatos que não têm esta tradição, esse compromisso pessoal com o liberalismo, mas que vão executar, sim, coisas importantes: privatizações, equilíbrio fiscal… O importante é que a ideia tenha se tornado forte o suficiente para torcer, inclusive, alguns dos seus potenciais adversários. E, na verdade, a gente está vendo pouco confronto. Do lado da esquerda, não vem nada muito agressivo contra as ideias liberais. O fracasso da Nova Matriz foi uma tragédia conceitual para eles. Ninguém mais acredita no modelo econômico de Dilma Rousseff, foi uma piada.

Se João Amoêdo, do seu partido, for eleito presidente, e Gustavo Franco for escolhido para ministro da Fazenda, qual seria a primeira ação na área econômica?

Mudar a própria ideia de reforma, como sendo algo que a gente faz, meio que o mínimo possível para que, em determinado ponto, a gente não precise mexer mais. É preciso tornar as reformas uma rotina. É um mundo dinâmico em que o governo precisa ser disruptivo, ele próprio, em promover a inovação. Então, tem muito para fazer. As pessoas se acostumaram a olhar para a administração pública como uma instância de conservadorismo, preservação, excessivamente cuidadosa, para promover progresso. Isso precisa mudar.

No Rio Grande do Sul, o seu pré-candidato do NOVO ao governo gaúcho é o Mateus Bandeira. Qual a primeira orientação que o senhor daria a alguém que entraria em um estado com uma situação fiscal tão dura?

É uma felicidade que o estado possa contar com o Mateus, que tem uma experiência riquíssima no mundo empresarial, com todas as ferramentas necessárias para lidar com empresas com dificuldade de todo tipo. Aqui temos um Estado com problemas que não são misteriosos, mas são difíceis como o das empresas com dificuldade: excesso de endividamento, acionistas complicados, clientes difíceis. Temos um gestor capaz de enfrentar esse desafio.

Muitos estados estão em uma situação calamitosa na área fiscal. Alguns esforços foram feitos para o ajuste fiscal, como no período de Yeda Crusius (2007-2010). Na sua opinião, os governos estaduais têm feito a sua parte e o estrutural complica tudo, ou na verdade, eles também não fazem a parte deles?

A crise dos estados agora é bem diferente da que eu vivi em meados dos anos 1990, quando 100% dos estados estavam quebrados, com seus bancos, empresas elétricas, telefônicas quebradas. Ninguém pagava os bancos federais… Além da dívida mobiliária estadual, que tinha naquele tempo, estar micada nos bancos estaduais, todos quebrados. É diferente agora. Não tem mais dívida mobiliária, não há atrasos com o endividamento federal. A União tem um mecanismo eficaz para garantir o pagamento da dívida e reter receita dos estados. Portanto, não tem calote nesse aspecto. O que cria um incentivo interessante é o seguinte: se o estado se comporta mal, faltou dinheiro, vai ter de atrasar a folha, portanto vai ter de explicar para um monte de gente irritada por que faltou dinheiro. Isso cria um incentivo completamente diferente. Tanto é que não são os estados nessa situação crítica, são alguns poucos, mas importantes. São Paulo não está entre os que estão em dificuldade, o que ajuda. Sempre que há problemas federativos, quando São Paulo é o problema, ele se torna grande demais. Desta vez, não. Há estados pequenos que estão bem também. E nos problemas federativos, é importante que a União saiba reconhecer quem se comportou bem. Tem de tratar quem se comportou mal, mas não é tratar bem. Vai custar alguma coisa para quem se comportou mal. Aqui no Rio Grande do Sul, da última vez o estado escapou de privatizar o seu banco. Desta vez, eu acredito que não vá escapar.

Nos últimos anos, o Brasil fechou várias portas no comércio internacional. De que forma estados e cidades podem se inserir internacionalmente e como poderiam ampliar seu papel na formulação de uma agenda de política externa?

O processo de abertura que está para começar, me parece que por pura vicissitude geográfica, seria mais intenso nos estados com fronteiras e intercâmbio econômico relevantes. Aqui no Sul, o contato com Argentina, Uruguai, Tríplice Fronteira, tem muita atividade econômica na fronteira diferente no Norte. O processo de abertura pode ter um impacto muito maior aqui do que em outras partes. Mas eu suponho que o impacto seja no país. Tem muita coisa para fazer: reforma tarifária, conteúdo nacional, acordos internacionais, OCDE, serviços, aduana. Olha, o Brasil inventou inclusive a tomada de três pinos, outras restrições que se impõem a padrões de segurança para brinquedos importados ficarem mais caros… Em matéria de truques protecionistas, o Brasil inventou um almanaque. Com isso, reduziu a inserção do país no comércio internacional.

Voltando a Roberto Campos, ele dizia que havia três saídas para o Brasil: Cumbica, Galeão e o liberalismo. Qual é uma saída para o Brasil?

Estamos descobrindo essa terceira via, que é muito melhor do que as outras. Com a privatização dos aeroportos, os dois primeiros deram uma melhorada, mas a terceira continua melhor.

 

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