Intervenção federal: uma nova chance para o Rio de Janeiro

A dificuldade da polícia militar para impedir que a violência afetasse a folia do Carnaval no Rio expôs, mais uma vez, a bagunça do sistema de segurança do Estado. Uma onda de arrastões varreu a Praia de Ipanema durante o feriadão de fevereiro. Só no dia 12, foram registradas 26 ocorrências na Delegacia de Atendimento ao Turista, quase sete vezes mais do que o normal. Inúmeras pessoas sofreram agressões, tiveram seus pertences roubados e foram encaminhadas para atendimento médico.

Enquanto isso, o prefeito da capital fluminense, Marcelo Crivella (PRB), chegava a Frankfurt para dar início a um giro pela Europa, contrariando a promessa de que acompanharia os desfiles, uma tradição entre os mandatários da cidade. O governador Luiz Fernando Pezão (MDB), que dias antes dissera que o esquema de segurança para proteger a festa estava “bem engrenado”, descansava no interior, na sua Piraí natal. O comando da PM agiu. Deslocou para a Zona Sul parte do efetivo de 17 mil homens que estava na Sapucaí e do batalhão de choque que opera na Rocinha desde 2017. Mas o estrago já estava feito.

Decreto assinado

Foi a gota d’água. No dia 16, o presidente Michel Temer assinou um decreto que determina a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Aprovada pelo Congresso dias depois, a medida significa, na prática, que toda a gestão da segurança do Estado passa para o governo federal até o dia 31 de dezembro. Para isso, foi nomeado um interventor, o general Walter Braga Netto, líder de 50 mil homens no Comando Militar do Leste (Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais) e agora de mais 50 mil nas polícias militar e civil, bombeiros e sistema penitenciário do RJ.

É a primeira ação nesse formato desde a promulgação da Constituição de 1988. A diferença em relação às operações para garantia da lei e da ordem (GLO), das quais o Exército já foi parceiro em outras ocasiões, em vários estados, é a autonomia política e administrativa. Desta vez, todo o poder está nas mãos do interventor. Desde que assumiu a função, o general reitera que o trabalho das forças armadas no Rio é “gerencial” e tem como objetivo “recuperar a capacidade operativa dos órgãos de segurança pública” e “baixar os índices de criminalidade no estado”. A morte de nove pessoas após tiroteio na Rocinha e uma chacina de cinco jovens em Maricá, no entanto, fizeram com que as ações nas ruas fossem intensificadas na última semana de março.

O coronel Ubiratan Ângelo, coordenador de segurança da ONG Viva Rio, acredita que a intervenção federal seja uma oportunidade para botar a casa em ordem. “É um período muito curto para agir nas causas dos problemas. São pouco mais de nove meses que servirão para reaparelhar as polícias, fazer a redistribuição do efetivo, impor uma lógica mais meritocrática e mudar aspectos operacionais”, enumera. Para ele, a escolha do general Walter Braga Netto foi um acerto de Temer. “Ele poderia ter nomeado qualquer pessoa, mas, por uma questão estratégica, optou por um militar que tem o conhecimento da cultura das tropas, o que facilita sobremaneira a atenção do efetivo às suas ordens”, avalia Ubiratan.

No dia 27 de março, o presidente assinou uma Medida Provisória (MP) que destina R$ 1,2 bilhão para a intervenção no Rio. Pelos cálculos da assessoria do interventor, no entanto, seriam necessários ao menos R$ 3,1 bilhões só para quitar dívidas com fornecedores e colocar o salário dos policiais em dia. Crítico da intervenção, o cientista político Guaracy Mingardi acredita que a ação tem efeito paliativo. “O desafio vai ser fazer com que isso engrene com efetivos normais”, alerta o subsecretário nacional de Segurança Pública durante o governo Lula. Para ele, a presença dos militares nas ruas serve apenas para criar uma sensação de segurança. “É como se desse uma injeção de policiais. É evidente que vai haver um decréscimo no crime”, afirma.

Mesmo que reconheça a necessidade de gerenciamento e de uma “limpeza ética” das corporações, Mingardi acredita que esse trabalho deve ser cotidiano, sob o comando de um administrador de reconhecida competência na área. “O fato de o indivíduo ser um general não o torna um especialista em segurança pública”, diz. Para ele, os problemas que terão de ser enfrentados quando o decreto cair e o efetivo voltar ao normal serão os mesmos que fizeram com que as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) fracassassem. “São estruturas muito caras, que o Estado não tem condições de manter”, analisa.

Necessidade de transformação

Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha entre os dias 20 e 22 de março na capital fluminense, 76% dos moradores da cidade são favoráveis à intervenção, e 52% acreditam que a situação vai melhorar após o fim do decreto. A maioria (71%), no entanto, não vê diferença no combate à violência desde que o Exército assumiu o comando das atividades na área de segurança. A avaliação popular pouco mudou após o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes. Antes do ocorrido, a aprovação era de 79%.

A Vila Kennedy, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, foi o local escolhido como laboratório para a intervenção. Desde os primeiros dias de trabalho, os militares realizaram na comunidade as chamadas “operações de estabilização do território”. Foram retirados obstáculos e barricadas das ruas para facilitar a entrada de serviços e o trânsito dos moradores e de carros da polícia. A estrutura da UPP local foi recuperada, e um serviço social de ordenamento da comunidade foi realizado. Os militares também passaram a ajudar a PM no patrulhamento.

O coronel Ubiratan enfatiza que a “maioria esmagadora” das pessoas que vive nessas regiões não quer a presença do tráfico. Ele lamenta que o Estado ainda não tenha encontrado fórmulas para livrá-las do jugo dos criminosos, mas também de seu próprio aparato. “A população das comunidades está sempre sob ocupação. Ou do tráfico, ou da milícia, ou da PM, ou, como agora, das tropas federais”, relaciona. Neste ponto admite: não basta intervir para pacificar o Rio, é preciso transformar.

“Acredito que o maior efeito da intervenção será mexer com as estruturas corrompidas do Rio de Janeiro, e isso pode nos dar a chance de melhorar as atividades da polícia no geral”, comenta Ubiratan. “Esse processo de ocupação é conceitual. Há uma expectativa de mudar aquele cenário interno da população, carente nesses espaços abandonados, para um cenário de convivência adequada, humano. Mas isso acaba não acontecendo, infelizmente”, pondera. De acordo com ele, experiências anteriores, como as ações nos complexos do Alemão (2010) e da Maré (2014) mostram que a saída das forças de repressão faz com que o tráfico logo se reestruture nos locais.

Reforço na investigação

Guaracy Mingardi defende o fortalecimento dos trabalhos de investigação. “A Polícia Civil tem sido deixada de lado aqui no Rio. Se não tem investigação, não tem resolução de crime. E quando isso desaparece, desaparece também a capacidade de controlar o crime profissional, o que não pode ser feito só através da prevenção”, explica.

O chefe de segurança da ONG Viva Rio ressalta que a violência só poderá ser controlada quando o Estado agir para enfraquecer a estrutura econômica do crime organizado através de uma reavaliação de sua própria atuação. “O tráfico hoje gera uma quantidade imensa de dinheiro, e o Estado só gasta, não recebe um centavo disso. A corrupção recebe”, salienta.

Ainda é cedo para saber qual será o verdadeiro impacto da primeira intervenção federal no país desde o início do período democrático. A iniciativa, no entanto, rompe a inércia da União diante do histórico fracassado de sucessivos governos fluminenses. É uma nova chance para diminuir a violência no estado que melhor simboliza as belezas e as agruras do Brasil.

Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Please enter comment.
Please enter your name.
Please enter your email address.
Please enter a valid email address.
Please enter a valid web Url.