Joesley Batista não pode ser um braço do Estado

Nos últimos dias, uma importante — e bota importante nisso — notícia tomou conta de todos os meios de comunicação: a conversa entre Michel Temer e o presidente do frigorífico JBS, Joesley Batista. Não conhecemos o conteúdo dos autos da investigação que ocupa os noticiários do país. O caso, entretanto, revela práticas pelas agências encarregadas da repressão penal que precisam ser problematizadas.

Portanto, sem afirmar que as práticas aqui criticadas ocorreram, dado o nosso desconhecimento dos autos, limitar-nos-emos à questão da instrumentalização do delator pelos órgãos persecutórios, com o fim de fazê-lo servir como meio de obtenção prospectiva da prova.

Neste caso, exige-se do investigado/delator um compromisso não apenas com a entrega de informações passadas, mas com a arregimentação de elementos probatórios que possam, no futuro, instruir a instauração de novas investigações ou a deflagração da ação penal.

Para tanto, uma das técnicas empregadas atualmente, no Brasil, implica no emprego do  investigado/delator como um longa manus do Estado, obrigando-o à marcar reuniões e gravar conversas com interlocutores, em que realiza questionamentos abertamente provocativos. A medida é completamente ilegal! Ao mesmo tempo, representa uma espécie sui generis de infiltração por agente não policial, aproximando-se, assim, da figura do crime putativo por obra do agente provocador, o que, a toda evidência, viola o direito ao silêncio do interlocutor.

Para ficarmos apenas no último: a garantia que veda a autoincriminação compulsória impede o Estado de utilizar-se qualquer estratagema que sirva para facilitar a obtenção não voluntária de informações do próprio acusado. A gravação de conversa telefônica por um dos interlocutórios, não obstante sua duvidosa legalidade, é absolutamente ilícita se, no caso concreto, tratar-se de mecanismo previamente preparado por um deles, para extrair, do outro, dados probatórios autoinculpatórios.

Tudo indica (e é preciso ir aos autos para confirmar) que Joesley foi ao encontro com Michel Temer, com o objetivo de realizar perguntar, cuja resposta pudesse confirmar a hipótese acusatória de envolvimento em práticas criminosas. A finalidade era a de obter, da própria pessoa, declarações que lhe comprometessem. Nada mais útil às agências repressivas, nada mais atentatório aos direitos fundamentais.

A técnica, como se pode intuir, tem sido utilizada para driblar a imposição de autorização judicial para a interceptação ambiental e, da mesma forma, ingressar na suposta organização criminosa, também sem autorização, por agente não policial (o que é vedado no Brasil).

Está tudo errado e há, ainda, várias outras perguntas em aberto: o que fazem com os áudios em que a pessoa (então investigada e gravada) diz que não aceita dinheiro de propina?

O Ministério Público está obrigado a juntá-lo aos autos? Ou ele pode juntar somente se lhe convier? Como se dá o controle das informações obtidas no ambiente negocial? E como ficam os riscos que derivam da quebra da cadeia de custódia? Enfim.

Estas são indagações que precisam ser feitas e, de fato, estão ocupando as reflexões dos principais juristas do país. Geraldo Prado, por exemplo, lembrou em texto recente o seguinte:

“Em um contexto de jogo em que o resultado não depende de provas, mas da persuasão do adversário para forçá-lo a aceitar o acordo, o usa das providências cautelares desviadas da função de proteção processual revela-se uma arma extraordinária”.
E, em outra passagem, prossegue:

“O sufocar do investigado, na fase preliminar, com adoção de medidas cautelares que retiram dele suas fontes de renda e sobrevivência e, não raro, a própria liberdade, não apenas serve para angustiá-lo, sob o ângulo psicológico, e enfraquecê-lo, tornando factível e <<interessante>> o acordo, como funciona ainda como uma espécie de <<radar das infrações penais desconhecidas>>, que seriam recolhidas por esta <<rede>> de providências cautelares de modo bastante simétrico às investigações inquisitoriais do procedimento eclesiástico da Idade Média”.

Tais práticas associadas às prisões preventivas para fins de obtenção da delação premiada, assim como de remeter ao pleno o julgamento de Habeas Corpus para dificultar o deferimento de liberdades, nos remeteram, imediatamente, às críticas de Bobbio, porque, dizia ele, determinados agentes não sabiam bem o que queriam, mas sabiam muito bem o que não queriam: a democracia.

O estatuto jurídico da proteção às liberdades públicas em matéria penal no Brasil apresenta, do início ao fim, um cenário de terra arrasada. É neste local e momento, quando as garantias cochilam, que o pendor à agressão da alteridade revela o ser humano como um selvagem que não poupa nem os de sua própria espécie

Por isso, nada se pensou — ou propositadamente esqueceu-se? — que tais práticas (delação premiada e o aproveitamento de provas ilícitas, para ficar apenas nestas) têm servido “ao “deus” da repressão a qualquer custo e, portanto, como argumento de gente que, segundo Jacinto Coutinho, se sente “responsável” (o problema só pode ser psicanalítico ou, quem sabe, psiquiátrico) pela “limpeza do país do mal do crime e dos criminosos”, como ‘justiceiros’, sem que para tanto tenha havido qualquer autorização constitucional”.

Diante deste quadro — assaz complexo — os atores jurídicos que prezam pela legalidade Constitucional precisam tomar a frente, a começar pelos advogados, e, assim, exigir máximo controle das delações e, no geral, das medidas cautelares de investigação, sob pena de transigirem com a destruição das bases do devido processo legal. Por isso é preciso acordar à situação; e resistir, ainda que isto, por vezes, implique na concessão de garantias àqueles que são considerados nossos “adversários”.

Se isto é assim — e deve ser mesmo — então desejamos a Michel Temer, caso não renuncie, um processo de impeachment em que todas as garantias sejam respeitadas, conforme determina a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Eis o preço que o Estado Democrático de Direito nos cobra. Afinal, o fato da (atual Presidenta) Dilma não ter tido as devidas garantias (sequer havia crime de responsabilidade) não deve ser motivo para que desejemos o mesmo a Temer.

E por um simples motivo: não temos inconstitucionalidades de preferência, como bem anotou o grande jurista Pedro Estevam Serrano. A Constituição, portanto, não poder ser vista como Geni, isto é: quando interessa, bendita; quando não interessa, maldita.

Razão pela qual comemorar a delação contra Temer, assim como eventuais interceptações ilegais contra ele, é olvidar que Lula e Dilma foram interceptados por quem — não esqueçamos — tinha (ou melhor: deveria ter) o papel de garantidor de direitos fundamentais.

O julgamento que os tribunais realizam acerca da prática de crimes, portanto, devem ser, como bem registrou Prado, “de natureza pública e não deve estar apoiado na intuição, empatia, antipatia, oportunismo — senso de oportunidade — mas sim em critérios da esfera do Direito e em informações que tratem de fatos aos quais o direito oferece algum valor como provas”.

Ainda que as pulsões queiram satisfação e, por isso, não lidem muito bem com limites, estes se fazem necessários, sendo as provas lícitas, portanto, um meio indispensável para a condenação legítima de qualquer pessoa. Há de se concluir e, para tanto, valemo-nos das lições de Binder, Geraldo Prado e outros: o regime da prova não está unicamente a serviço de um valor epistêmico. Pelo contrário. As regras probatórias podem e devem ser um obstáculo, instrumentos de limites à busca da verdade e, como tal, representam uma dimensão contra epistêmica, desempenham uma função de garantia e protegem o cidadão contra quaisquer espécies de abuso na coleta de informações.

Encerramos, assim, com Binder, ressaltando que “a informação que é um fruto viciado por uma prática ilícita não pode ser utilizada para fundar um ato de governo, tal como é a sentença”.

Por Djefferson Amadeus e Antonio Pedro Melchior/Consultor Jurídico

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