Na raiz do crime organizado

Por ingenuidade ou ganância, uma pequena comerciante vende cigarros contrabandeados e tem um lucro de R$ 1,00 por carteira. O motorista de uma carreta transporta diariamente milhares de pacotes em duas ou três viagens entre Ciudad del Este e Foz do Iguaçu. E, por fim, o consumidor adquire mercadorias ilegais mais baratas que os produtos nacionais. Todos participam de uma grande cadeia que alimenta facções criminosas como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV). Mais do que isso: ajudam a financiar outros crimes, como o tráfico de drogas e a corrupção, que têm ramificações em vários países da América Latina.

“Não é nada pequeno. Não é coisa de camelô. Há um mundo paralelo cada vez mais forte ameaçando nossos países. Esse dinheiro que vai para organizações criminosas ocupa o espaço que era do Estado”, alerta Edson Vismona, presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), entidade empresarial que atua no combate à sonegação e ao comércio ilegal. “No Rio de Janeiro, por exemplo, o crime organizado ocupou o espaço territorial. Você não pode fornecer serviços para esse espaço, como gás, energia, esgoto. O Estado deixa de ocupar porque o crime ocupa. Não estamos falando de algo que pode acontecer, mas algo que está acontecendo. O Rio de Janeiro está sob intervenção federal porque perdeu sua capacidade de governar”, lamenta.

Em abril, especialistas dos Estados Unidos, do Chile, da Argentina e do Brasil estiveram em Foz do Iguaçu para um dos principais eventos sobre o crime de contrabando e pirataria. O seminário Illegal Market – The Threat of Transnational Organized Crime in The Southern Cone (Mercado Ilegal – A Ameaça do Crime Organizado Transnacional no Cone Sul, em tradução literal), mais conhecido como E-Latino, reuniu jornalistas da América Latina e teve como foco a divulgação e a análise de números alarmantes sobre o tema. Foram avaliadas estatísticas da entrada de remédios, cigarros, armas, drogas e munições que atravessam as fronteiras por contrabando e descaminho.

Os especialistas foram unânimes: para conter e desorganizar o avanço das facções criminosas, é preciso controlar com firmeza e de forma permanente a fronteira Brasil-Paraguai, que é atualmente a principal porta de entrada de produtos ilegais no país. Segundo Vismona, “as fronteiras estão sendo ocupadas pelo crime organizado. O PCC, por exemplo, controla o tráfico de cigarros, que lhe dá grande liquidez, ainda que também faça contrabando de armas e drogas”. A estimativa é de que 48% das vendas no Brasil sejam de cigarros contrabandeados e quase a totalidade com origem no Paraguai. Vismona observa que os contrabandistas são presos em flagrante, mas são soltos.

O que impera é a sensação de impunidade. Os números são alarmantes. A grande maioria é de cigarros, que totalizam 67% das apreensões. “É importante deixar claro que não se deve confundir o comércio popular com o ilegal. Nada contra o comércio popular. Tudo contra o ilegal.”

Para o presidente do ETCO e do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP), um país que quer ser grande não pode conviver com essa mácula. “Não é possível aceitar que o cigarro mais vendido no Brasil seja contrabandeado do Paraguai. É preciso promover a união de forças entre o poder público e a sociedade civil para encontrar soluções para esse problema”, acrescenta.

Fronteiras abertas

É pelas fronteiras que entra o produto falsificado e, com ele, drogas e armas. Hoje, 55% dos pontos de vendas possuem cigarros falsificados e 72% praticam preços abaixo do mercado. São cigarros, remédios, eletrônicos, óculos de sol. A tecnologia permitiu ao cidadão maior acesso aos produtos e ao mesmo tempo o aperfeiçoamento de técnicas de falsificadores, colocando a saúde do cidadão em risco.

Se combater o contrabando é um desafio que se torna cada vez mais urgente, as dificuldades são imensas. Com o Brasil tendo 16 mil quilômetros de fronteira com dez países, a Polícia Federal conta com pouco mais de 10 mil agentes e 24 delegacias. Uma das principais causas para o problema é a falta de investimento nas forças policiais que atuam na área de fronteira, como a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal e as Forças Armadas.

“Há um permanente contingenciamento de recursos, que, neste ano, chegou a quase metade. É muito difícil você conseguir, em uma área tão sensível e difícil, agir sem o apoio e a ação das polícias, sem recursos financeiros. Se contingenciamos recursos da área de segurança, você está abrindo as portas para o crime. Então, temos de combater de forma articulada e permanente, que é a nossa proposta, e o governo tem sido sensível a isso”, diz Vismona.

Durante o E-Latino, a Receita Federal de Foz do Iguaçu apresentou um balanço das apreensões de mercadorias e veículos realizadas em 2017, que somaram cerca de R$ 260 milhões – só naquela região. Esse valor é 19% superior ao registrado no ano anterior. O cigarro lidera o ranking da ilegalidade, correspondendo a 38% das mercadorias apreendidas no ano passado. No total foram 20 milhões de maços de cigarro, o que representa cerca de R$ 100 milhões.

Em 15 anos, a Receita Federal apreendeu na região da tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina o equivalente a US$ 1,2 bilhão em contrabando, segundo o delegado do órgão em Foz do Iguaçu, Rafael Rodrigues Dolzan.

Para Vanessa Neumann, fundadora da Asymmetrica, empresa de consultoria e pesquisa de risco político, é preciso ter uma atuação cooperativa para ser efetiva. “Parece ter apreensões aqui e lá. Quando se retira uma célula, ela facilmente se restitui”, aponta ela, que entende que é preciso atuar de forma mais ampliada para um cerco eficiente.

Necessidade de transformação

A venda de produtos ilegais no Brasil trouxe prejuízos de R$ 146 bilhões à economia em um ano, segundo dados levantados pelo Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP) em 15 setores produtivos. A venda de cigarros ilegais, por exemplo, bate recorde: 48% de todo o mercado nacional do produto é dominado por marcas vindas do Paraguai. Com isso o Brasil se tornou o maior mercado global de cigarros ilegais.

Atualmente a produção do Paraguai é 30 vezes superior ao mercado consumidor interno. Dentre as três marcas de cigarros mais comercializadas no Brasil em 2017, duas são do país vizinho. A mais vendida é a Eight, fabricada pela Tabacalera del Este (Tabesa), empresa do ex-presidente paraguaio Horácio Cartes, que renunciou o governo em maio.

A sonegação já chega a R$ 9 bilhões. E uma das razões é o aumento desproporcional de impostos nos países latino-americanos. No Chile, a tributação sobre os cigarros é de 80%; na Argentina, 70%; no Brasil de 70% a 90%. O Paraguai tem uma capacidade produtiva de 100 bilhões e atualmente produz 60 bilhões por ano, ou seja, há uma boa margem para aumentar a produção deste mercado ilegal.

O consumidor sabe, mas desafia os riscos

Durante o 12º Encontro Nacional de Editores, Colunistas, Repórteres e Blogueiros (Enecob), em Foz do Iguaçu, foram apresentados dados de uma pesquisa recente da ETCO, segundo a qual os brasileiros acreditam que o contrabando de cigarros traz enormes prejuízos para o país. Para 86% dos entrevistados, o contrabando incentiva o crime organizado e o tráfico de drogas e armas, e 87% afirmaram que esses produtos aumentam os riscos à saúde.

Se o consumidor parece consciente de que está alimentando o crime quando adquire um produto ilegal, nem por isso parece disposto a abandonar a prática que lhe fornece mercadoria similar com preços bem mais baixos. Ao optar por cigarros contrabandeados, adquire produtos que não passam pelas rigorosas exigências da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e não estão sujeitos às análises regulatórias que garantem, principalmente, o controle de teores de substâncias – a Souza Cruz, por exemplo, produz 28 mil amostras por ano.

Sem o mesmo controle, os produtos ilegais apresentam novos riscos à saúde. Segundo pesquisa realizada pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, foram encontrados insetos, areia, terra, pelos, coliformes fecais, plásticos e fungos em cinco marcas de cigarros frequentemente contrabandeadas para o Brasil. Além disso, em 65% das marcas pesquisadas, foram observadas elevadas concentrações de elementos químicos como níquel, cádmio, cromo e chumbo e o dobro da concentração média de arsênio encontrado em cigarros legais.

No entanto, para a maioria dos frequentadores de centros de compras especializados em cópias e produtos contrabandeados, não há nada de errado em levar para casa um tênis ou um bolsa de grife falsificada. Eles seguem uma lógica que tem se revelado muito aquém da realidade: as únicas vítimas seriam os governos, que recolhem impostos abusivos, e os empresários que cobram uma fortuna por alguns dos produtos. Mas a analista política Vanessa Neumann adverte: “Não há nada de inocente na compra de um produto pirata.”

Especializada na análise de crimes transnacionais, ela dedicou-se ao estudo das interações entre crime, Estado e os impactos sobre a sociedade, democracia e liberdade. Quando atuou como consultora da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ela chegou à conclusão de que, ingenuamente, a maioria dos consumidores ao redor do planeta está colaborando com o terrorismo e com o crime organizado.

Números do mercado ilegal

R$ 146 bilhões de prejuízo à economia brasileira em um ano

R$ 260 milhões foram apreendidos em mercadorias e veículos apenas em Foz do Iguaçu em 2017

48% do mercado nacional de cigarros é dominado por marcas vindas do Paraguai

19% foi o crescimento das apreensões de mercadorias e veículos entre 2016 e 2017 em Foz do Iguaçu

Vice-presidente da Associação Civil Antipirataria na Argentina, Sérgio Piris revela que 40% da indústria têxtil de seu país é ilegal. Pelo mesmo problema que ocorre no Brasil, os impostos são muito altos. Ele diz que essa situação leva trabalhadores a viverem em situação subumanas. “O contrabando não gera perdas apenas para as indústrias, os governos e para a saúde da população, mas basicamente colabora para a expansão do crime organizado transnacional”, salientou ele.

O tráfico de drogas, face mais conhecida e temida das facções, se entrelaça com o contrabando, pirataria, falsificação, tráfico de armas e munição. Alimenta a corrupção e o trabalho escravo, gerando lucros e poder. Nos últimos quatro anos, este fenômeno assumiu uma dimensão nunca antes vista. “O Paraguai produz 20 vezes mais do que consome de cigarros, o que gera perdas milionárias aos vizinhos”, diz Piris.

Para o americano Douglas Farah, presidente da IBI Consultants e consultor do governo americano para crimes transnacionais e combate ao financiamento de grupos armados pela corrupção e comércio ilegal, o Brasil e outros países do Cone Sul precisam enfrentar a relação cruzada entre grupos terroristas internacionais como o Hezbollah e organizações regionais como as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o PCC. “Há evidências de que a conexão entre esses grupos na tríplice fronteira é uma realidade, e que as atividades criminosas como o contrabando e o tráfico de drogas também servem para financiar o terrorismo internacional”, afirma.

Segundo Farah, essas redes criminosas controlam entre 5% e 10% da economia mundial. “Na América Latina, além do domínio do tráfico e do contrabando nas fronteiras, elas exercem poder político em países como Venezuela e Nicarágua e são responsáveis por operações que financiam organizações terroristas como o grupo libanês Hezbollah.”

Nascida na Venezuela, Vanessa Neumann explica que o narcotráfico penetrou na estrutura política de seu país e o dinheiro da atividade contaminou o sistema. “Mais de 30 milhões de pessoas estão sob um regime cuja relação com o narcotráfico é notória, mas, mesmo assim, o mundo fecha os olhos para essa que é uma das causas da crise venezuelana. A Venezuela é o exemplo de como o crime organizado pode destruir um país”. Vanessa também vê Ciudad del Este como um centro de lavagem de dinheiro. “É uma máquina que funciona tão bem que pode atrair criminosos e terroristas de todas as partes do mundo.”

 

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