O acordo que rachou o país

Ao ser afastado da presidência dos conselhos da holding J&F por ordem da Justiça, no final de março, Joesley Batista rememorou o caminho de outros megaempresários no radar da Operação Lava-Jato. Se não agisse, cinco inquéritos logo o lançariam do ambiente de negócios e das colunas sociais para a rotina de uma cadeia. Com o irmão Wesley, ele transformara em império os negócios de uma família enriquecida com a relação com Brasília, desde a construção da cidade, oportunidade aproveitada pelo pai, José Batista Sobrinho, o Zé Mineiro, vindo de Alfenes (MG), fornecedor de carne para o canteiro de obras da Capital Federal. Nas mãos da segunda geração, a empresa deu um salto, que se revelaria um dos maiores escândalos da história da República.

Graças a uma política de boa vizinhança com os governos Lula e Dilma, provedora de dinheiro público via Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), os irmãos Batista engordaram em bilhões o patrimônio da principal empresa do grupo. Formada com as iniciais do patriarca, a JBS abriu seu capital em 2007, com ações negociadas na BM&FBovespa ? hoje a área técnica do Tribunal de Contas da União (TCU) calcula em R$ 711,3 milhões o prejuízo que o BNDES teve com operações de compra de ações e debêntures (títulos de dívida) do grupo.

Com aquisições em outros segmentos, do calçado à energia, os Batista montaram o maior grupo econômico privado do país. O milagre da multiplicação da carne ocultava, ou tentava ocultar, uma relação promíscua com o poder. Com o risco de ir para a cadeia, Joesley antecipou-se. Em vez de admitir os ilícitos depois de preso como fizeram executivos da Odebrecht, em uma delação para atenuar pena, em abril negociou com a Procuradoria-geral da República ser um informante dos crimes ainda não descobertos, em um recurso chamado colaboração premiada. Para a construção do vantajoso acordo, Joesley desfalcou a própria Lava-Jato. Até março, Marcelo Miller atuava como procurador da República. Depois foi contratado como advogado do escritório da defesa de Joesley.

Para executar a estratégia, o empresário gravou o presidente Michel Temer e o ex-presidenciável Aécio Neves, e fez confissões comprometedoras para 1.829 candidatos de 28 partidos e para ambos os ex-presidentes petistas (segundo ele, abriu conta no Exterior para Lula e Dilma, a pedido de Guido Mantega) e até mesmo um procurador,  Angelo Goulart Vilela, preso depois de o empresário revelar à força-tarefa ter nela um infiltrado a seu serviço. Foi uma humilhação para a Procuradoria: em junho de 2016, Vilela havia discursado na Câmara em favor das 10 medidas contra a corrupção.

Os grampos, em uma ação complementada pela PGR com táticas como o rastreamento de dinheiro entregue ao deputado Rodrigo Rocha Loures (ex-assessor de Temer) e a um primo de Aécio (Frederico Pacheco de Medeiros, o Fred, que o repassou a Mendherson Souza Lima, assessor do senador Zezé Perrela, do PSDB-MG), colocaram em investigação o presidente, aniquilaram a reputação do senador, afastado do Congresso e do comando do PSDB, e causaram a prisão de sua irmã Andrea, apontada como operadora de propina.

Questionamentos sobre a Operação

Na tarde de quarta-feira, 10, Joesley e Wesley, acompanhados de mais cinco pessoas, todas da empresa, entraram apressados no Supremo Tribunal Federal (STF) e rumaram para o gabinete do ministro Edson Fachin, a quem caberia homologar a delação. Reiteraram o que haviam contado à Procuradoria-Geral da República (PGR). Pelo que foi homologado por Fachin, os sete delatores ficaram livres do risco de serem presos e foram dispensados de usar tornozeleiras eletrônicas. Beneficiados por um acordo vantajoso com as autoridades, Joesley, assim como o irmão Wesley e outros familiares, viajaram para os Estados Unidos antes de a operação estourar. Teriam ainda especulado com a crise: a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) investiga se procedem os comentários no mercado financeiro segundo os quais o grupo J&F operou para lucrar com os efeitos das revelações. De território americano os Batista acompanharam a perplexidade do país que deixaram para trás.

A delação, revelada às 19h30min de 17 de maio, em postagem do jornalista Lauro Jardim, de O Globo, veio a público na forma de uma frase temerária. Embora sem a sustentação de uma gravação, a manchete “Dono da JBS grava Temer dando aval para a compra de silêncio de Cunha” difundiu-se como se fosse uma sentença, interrompeu a decolagem das reformas e da recuperação econômica do país, ressuscitou e ampliou o clima de desconfiança, estendido aos próprios juízes e procuradores, diante da percepção de darem credibilidade e liberdade a um criminoso confesso em uma ação vista como apressada, e rachou não apenas a base do governo mas inclusive a grande mídia, até então sintonizada quanto aos métodos da faxina nos círculos do poder.
As Organizações Globo sustentaram o discurso pela necessidade de renúncia ou impeachment, enquanto a Folha levantou suspeição sobre os áudios e o Estado de S.Paulo definiu em editorial que, com um “golpe de mestre”, a JBS “saiu no lucro” ? mesmo o jornal Valor Econômico, da família Marinho, destacou o termo “delação ultrapremiada”.

Surpreendida por uma operação formulada entre criminosos e procuradores, a sociedade se dividiu. O presidente da Associação Brasileira de Direito e Economia (ABDE), Luciano Benetti Timm, relaciona em parte o assombro ao ineditismo do uso do recurso investigativo. Ele considera válido o instituto da colaboração premiada, porém faz ressalvas na forma como foi utilizado neste caso. Corrupção é um delito difícil de comprovar. Não deixa um corpo, como o homicídio. Uma estratégia para contornar essa dificuldade foi aprendida nos EUA por procuradores e juízes à frente de operações como a Lava-Jato, e para temor do meio político no Brasil tende a se tornar comum: a detenção dos autores dos crimes de colarinho-branco, mesmo cautelar, quando se prolonga, elimina a sensação de impunidade e inspira entre aqueles ainda não presos o desejo de contribuir na produção de provas e assim conseguir tratamento diferenciado. Em vez de uma cela, arcam com uma multa negociada.

Ao se referir ao caso JBS, Timm pondera que o vazamento das informações, principalmente se seletivo, influencia politicamente o julgamento, e a operação mostrou açodamento. “Houve uma certa construção midiática”, analisa. Os comentários do presidente expostos por Joesley são insuficientes para justificar o tratamento recebido, ainda mais em um momento quando a continuidade das reformas é relevante. “Além das gravações,  é preciso considerar que o material inclui muitos anexos e planilhas”, observa. “Por que estes não foram examinados publicamente?” Outro questionamento: “Por que, na perícia das gravações, não houve o envolvimento da Polícia Federal, muito mais equipada do que a Procuradoria?”
Contratado pela defesa de Temer, o perito Ricardo Molina classificou como “imprestável como prova” a gravação da conversa de Joesley com o presidente e considerou a PGR “ingênua” e “incompetente” ao utilizá-la. “O que tem no laudo (da PGR sobre a gravação) é coisa de gente que não sabe mexer em áudio”, afirmou em coletiva de imprensa em 22 de maio. Conforme ele, o áudio está “contaminado por inúmeras descontinuidades”, com diversos pontos “inaudíveis” e de “possível edição”.

O acordo dos investigadores com o empresário criminoso confesso foi atacado pelo presidente Temer em pronunciamento na tarde de sábado, 20. Ao se referir a Joesley Batista, instalado em Nova York enquanto o Brasil enfrenta um tsunami político, afirmou: “Ele não passou nenhum dia na cadeia. Não foi punido e, pelo jeito, não será. Cometeu o crime perfeito.” Temer ainda acusou o empresário de comprar US$ 1 bilhão pouco antes de a gravação ser divulgada e assim especular contra a moeda nacional. “Quebraram o Brasil e ficaram ricos.”

Na terça-feira seguinte, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, em artigo no site UOL, argumentou que, sem o acordo, o país teria sido ainda mais lesado: “Para os que acham que saiu barato, anoto as seguintes considerações pouco conhecidas: no acordo de leniência, o MPF que atua no primeiro grau propôs o pagamento de multa de R$ 11 bilhões, as punições da Lei de Improbidade e da Lei Anticorrupção ainda estão em aberto, no que se refere às operações suspeitas no mercado de câmbio não estão elas abrangidas pelo acordo e os colaboradores permanecem sujeitos à integral responsabilização penal e a colaboração é muito maior que os áudios questionados”.

Porém, a multa ainda está em negociação. O grupo J&F rejeitou os termos do acordo de leniência proposto. Em vez dos R$ 11,17 bilhões exigidos pelo Ministério Público Federal (MPF), os representantes da J&F haviam oferecido menos de uma décima parte da quantia, R$ 1 bilhão, o equivalente a 0,51% do faturamento. O grupo J&F também terá de negociar uma multa a ser paga para o Departamento de Justiça (DoJ) dos EUA.
O maior acordo até agora é o do grupo Odebrecht, fechado no ano passado, quando a empreiteira se comprometeu a pagar cerca de R$ 8 bilhões, em 23 anos, para o governo brasileiro, e outros R$ 3,5 bilhões destinados a acordos com autoridades americanas e suíças, além de US$ 185 milhões fechados com a República Dominicana.

Marcha da recuperação foi interrompida

Se a delação da Odebrecht foi negociada durante 10 meses e a da OAS se arrasta por mais de um ano, a da JBS foi feita em tempo recorde. No final de março, iniciaram-se as conversas. Os depoimentos começaram em abril e na primeira semana de maio já haviam terminado. Pela primeira vez na Lava-Jato foram feitas “ações controladas”, sete no total. É um meio de obtenção de prova em flagrante, mas em que a ação da polícia é adiada para o momento mais oportuno para a investigação. Os diálogos foram gravados e as entregas de malas ou mochilas com dinheiro, dotadas de chips para serem rastreadas, foram filmadas pela PF. As cédulas tinham seus números de série informados aos procuradores. Nessas ações controladas foram distribuídos cerca de R$ 3 milhões em propinas carimbadas durante todo o mês de abril. Por ironia, a prática foi estabelecida na primeira lei sobre o crime organizado, de 1995, nascida de um projeto do então deputado Michel Temer.

Ao vir a público a delação, o escritório do ministro Sepúlveda Pertence, aposentado do Supremo Tribunal Federal e hoje advogado, deixou a defesa de Joesley Batista. Segundo Evandro Pertence, sócio do escritório, houve “inquestionável quebra da confiança indispensável entre cliente e advogado”. “Fomos surpreendidos com absolutamente tudo o que a imprensa divulgou esta semana sobre as atividades subterrâneas de Joesley e cia., das quais nunca nos fora dada qualquer notícia”, disse, no domingo, 21.

O quanto das confissões do empresário é verdade ainda não há como dizer. Não resta dúvida é que causaram prejuízo à recuperação do país. Na véspera do vazamento da operação, Michel Temer vislumbrava o melhor momento de seu governo, ao comemorar os indicadores de fim da recessão e fechar um pacto pelas reformas com os prefeitos, via Confederação Nacional de Municípios (CNM), em Brasília. No outro lado do Atlântico, em Londres, o presidente da Petrobras comemorava em uma tour internacional dirigida a investidores: “O Brasil e a Petrobras estão de volta ao caminho certo”. Pedro Parente tinha bons números a divulgar: a companhia lucrou R$ 4,449 bilhões no primeiro trimestre deste ano, revertendo o prejuízo de R$ 1,246 bilhão no mesmo período do ano passado.
O futuro promissor para o governo era sugerido no palco da Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios, onde Temer, enfileirado com seu time de ministros e com os presidentes da Câmara e do Senado e diante de uma plateia lotada no Centro Internacional de Convenções do Brasil (CICB), foi aplaudido ao anunciar a medida provisória de parcelamento de débitos relativos a contribuições previdenciários dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. No encontro, recebeu o apoio da CNM para a Reforma da Previdência.

O presidente da Confederação, Paulo Ziulkoski, afirmou: “Respeitando as diferenças ideológicas e partidárias, nós tomamos a decisão, em assembleia, de apoiar a reforma da Previdência na forma que está posta pela relatoria.”

Tão importante como o apoio, pois os 5.568 prefeitos são estratégicos como fonte de pressão sobre os parlamentares, foi a demonstração de força política. A marcha se transformou em um ritual de passagem de presidentes da República ? para a afirmação ou para o descrédito. No primeiro caso em 2003, quando o então estreante Luiz Inácio Lula da Silva mostrou senso de oportunidade. Pela primeira vez a mobilização da CNM contou com a presença de um presidente e o apoio explícito do governo federal, incluindo a presença dos ministros. Com anúncios de recursos, iniciou um período de relação harmônica com prefeitos. O contraponto ocorreu a partir da edição de 2012, quando Dilma Rousseff amargou vaias mesmo quando acenava com bondades. A julgar pela reação dominante no público da 20ª edição da mobilização municipalista, em 16 de maio, Michel Temer venceu a sua primeira marcha, mas pouco pôde festejar, porque a delicada articulação política com o Congresso desmoronou no dia seguinte, com a delação de Joesley Batista.

A gigante

Com mais de 260 mil colaboradores em mais de 30 países, a J&F Investimentos é o maior grupo econômico privado do Brasil. Reúne, além da JBS (líder global em processamento de proteína animal, com vendas para mais de 150 países), a Alpargatas (maior empresa de calçados e vestuários na América Latina), a Vigor (maior empresa brasileira de derivados de leite), a Flora (empresa de limpeza doméstica e higiene pessoal), a Eldorado Brasil (celulose), o Banco Original e o Canal Rural, entre outras empresas. A JBS nasceu em 1953, quando o fundador, José Batista Sobrinho, abriu a Casa de Carnes Mineira, um açougue com capacidade de processamento de cinco cabeças de gado por dia, em Anápolis (GO). Dali Zé Mineiro (como era chamado o patriarca) se transferiu a Brasília em construção, em 1957, para se tornar um dos primeiros fornecedores de carne bovina no canteiro de obras. O primeiro frigorífico Friboi foi inaugurado em 1970 em Formosa, município goiano vizinho ao Distrito Federal onde Joesley e o irmão Wesley nasceram.

Brasília – O presidente Michel Temer, ministros e parlamentares participam da abertura da 20ª Marcha a Brasília em Defesa dos Municípios (Antonio Cruz/Agência Brasil)
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