O exemplo de justiça que vem do Peru

“¿Qué le pasa a Perú que cada presidente está sendo preso?”. Foi assim – atônito – que o Papa Francisco dirigiu-se aos bispos de Lima, durante reunião da Arquidiocese da capital peruana, em janeiro, tentando encontrar uma resposta para o que ocorre por lá. O sumo pontífice fez duras críticas à corrupção, à política local e à situação de diferentes ex-presidentes. Nos últimos 12 anos, a nação andina testemunhou três chefes de Estado serem condenados e dois efetivamente presos.

Mas seria a situação do país tão preocupante assim, como reagiu o Papa Francisco? O julgamento e encarceramento de um presidente é muito impactante para uma nação. Seja qual for o regime de governo ou sua localização no globo, suscita polêmica e revolta. Porém, também pode indicar uma evolução.

Professora de Direito Internacional Privado e Metodologia de Pesquisa no Instituto Brasiliense de Direito Público, em Brasília, Samira Otto aponta que tanto o caso do Peru como o do Brasil, que viveu há pouco a condenação em segunda instância do ex-presidente Lula, apontam a solidez das instituições. “A América Latina tem sido palco de ebulições institucionais profundas, mas eu vejo isso, em geral, de forma muito positiva”, avalia Samira, doutora em Direito Comparado pela Universidade de Paris I, na Sorbonne, e docente convidada na Stanford University, nos Estados Unidos.

Para ela, os episódios recentes revelam maturidade, sobretudo do Judiciário e dos órgãos de investigação e controle, assegurando o check-in balance – referência à teoria de freio e contrapeso, essência do mecanismo da harmonia e separação dos poderes. Proposto por Montesquieu, o sistema permite que cada um esteja apto a conter os abusos do outro, de forma que se equilibrem.

Por outro lado, as recentes condenações demonstram a fragilidade da classe política, vulnerável a diversas formas de corrupção. Assim como no Brasil, onde grandes empreiteiras são citadas nos processos da Operação Lava Jato, no Peru as condenações têm a presença da Odebrecht, que financiou campanhas e promoveu benefícios pessoais. Em fevereiro de 2017, o procurador-geral da República à época, Rodrigo Janot, reuniu em Brasília representantes de 14 países que investigam o pagamento de propina por empreiteiras brasileiras em seus territórios. Janot deixou claro que a operação teria repercussão internacional. E teve: o Peru é um dos países mais afetados.

Prisão e suspeita

Em 2005, foi preso o primeiro presidente peruano. Alberto Fujimori acabou condenado a 25 anos de prisão por múltiplas violações dos direitos humanos – entre elas 25 mortes e dezenas de sequestros – e por esterilizações forçadas a mais de 250 mil mulheres, em função do projeto de planejamento familiar. Também foi penalizado por envolvimento com corrupção, antes dos escândalos com a Odebrecht.

Às vésperas do último Natal, no entanto, uma decisão do atual presidente do Peru, Pedro Pablo Kuczynski, dividiu os peruanos: Fujimori recebeu um indulto. Kuczynski argumentou que a motivação foi humanitária, uma vez que a prisão teria agravado as condições de saúde do ex-presidente, podendo levá-lo à morte.

A iniciativa aconteceu logo após o congresso peruano negar um pedido de impeachment contra Kuczynski. Ele e suas consultorias são suspeitos de se beneficiarem com a concessão de obras públicas à construtora brasileira, quando era ministro. Após negar vínculo, foi desmentido pela empreiteira, que colabora com a Justiça. A oposição alega que o indulto a Fujimori faz parte de uma negociação em troca da salvação do presidente, que está em sério risco de ser destituído do poder.

Em recente artigo, a chefe do Departamento América Latina da Deutsche Welle, Uta Thofern, aponta que o Peru vive um período de boa situação econômica, o que daria segurança a Kuczynski. Contudo, o futuro do presidente é incerto, devido às acusações de corrupção e ao forte antifujimorismo da sociedade peruana. “Ele comprometeu de vez sua credibilidade e desferiu um duro golpe contra a confiança na política na América Latina”, escreveu a jornalista alemã.

Cadeia para presidente e primeira-dama

A empreiteira brasileira Odebrecht aparece novamente no processo de Ollanta Humala, que presidiu o país entre 2011 e 2016. Ele e a esposa, a ex-primeira-dama Nadine Heredia, foram presos preventivamente por 18 meses. Em duas tentativas de concorrer à presidência, a Odebrecht teria repassado à campanha, de forma não declarada, um total de US$ 3 milhões. Em 2006, quando perdeu para Alan García, e em 2011, quando ganhou de Keiko Fujimori, filha do ex-presidente. O próprio empresário Marcelo Odebrecht declarou, no Brasil, em sua delação à Lava Jato, ter repassado U$ 3 milhões à campanha de Humala.

A mesma pena – 18 meses de prisão preventiva – foi aplicada a outro ex-presidente do país: Alejandro Toledo. Duas acusações pesam sobre ele: crimes de tráfico de influência e lavagem de dinheiro. Toledo teria recebido um suborno de US$ 20 milhões da Odebrecht para favorecê-la na concessão da Rodovia Interoceânica Sul, que liga o Peru ao Brasil. Mas antes que a Justiça determinasse sua prisão, Toledo fugiu para os Estados Unidos. Hoje é considerado foragido.
Na fila de condenações também está Alan García, que derrotou Humala em 2006. Ele está sendo acusado de ter recebido US$ 2 milhões para facilitar a obtenção de contratos pela mesma empreiteira para a construção do metrô de Lima. García pode ser o próximo a cumprir pena. Ao todo, estima-se que a empresa, que atua há 40 anos no território peruano, obteve contratos da ordem de US$ 12 bilhões.

Fortalecimento do Judiciário

Se a fragilidade da classe política ficou evidente, por outro lado, o progresso nas investigações demonstra o fortalecimento do Judiciário. “Comparativamente, tanto no Peru como no Brasil, o Legislativo e o Executivo estão em descompasso com o Judiciário. Precisam de reformas profundas para desempenharem melhor o seu papel”, avalia Samira Otto.

No Peru, indica a professora de Direito Internacional, algumas medidas importantes foram tomadas. A Comissão Especial de Reforma Integral da Administração da Justiça (Ceriajus) propôs mais de cem projetos de reformas, como capacitação dos membros do Judiciário, criação de instrumentos de controle externo e maior descentralização administrativa. Também foram aprovadas novas leis favorecendo procedimentos de investigação contra corrupção e repressão contra o crime organizado.

Já no Brasil, iniciativas de fortalecimento institucionais foram adotadas na última década, contribuindo para agilizar as investigações sobre crimes de corrupção e contra o patrimônio público. Estruturas e carreiras da Polícia Federal foram modernizadas, a Constituição promoveu a independência do Ministério Público e novas leis instrumentalizam o Judiciário para cumprir melhor o seu papel, como a lei de Lavagem de Dinheiro (lei 12.683/2012) e a Lei Anticorrupção (lei 12.846/2013).

“A Operação Lava Jato é o resultado desse quadro. Da combinação desses vários elementos, surgiu uma equipe altamente qualificada e dedicada exclusivamente à investigação que resultou na condenação do ex-presidente Lula, além de outros nomes políticos importantes no Brasil”, aponta. Ela pondera que ainda há deficiências e fragilidades a serem sanadas, como a dependência financeira da Polícia Federal do governo federal.

O trabalho desenvolvido por aqui é visto como referência pelos magistrados peruanos. Richard Carhuancho, juiz responsável pela condenação de Humala e da ex-primeira-dama, por diversas vezes elogiou publicamente o papel que o brasileiro Sérgio Moro desempenha no Brasil.

A pesquisadora chama atenção para a apropriação política dos casos de corrupção, indo contra uma farta gama de indícios e provas testemunhais, além da análise técnica de operadores do Direito em primeira e segunda instância. Ela considera “reducionista” o discurso que aponta uma conspiração contra a esquerda latino-americana, partindo de uma interferência americana. De acordo com a professora, é uma tentativa de mudar o foco do processo.

Com as instituições fortalecidas e em permanente evolução, quem exerce uma função pública passou a se submeter a mecanismos cada vez mais precisos de supervisão. A prestação de contas e a transparência tornaram-se ferramentas potentes contra o crime.

Para Samira, o quadro atual é o início de uma arquitetura que demanda aprimoramento contínuo, mas tem boas perspectivas. “As pessoas poderosas e ricas pagando por crimes cometidos fazem brotar esperança no coração do cidadão latino-americano”, pontua.

Quem sabe não é essa a resposta de alento que o Papa Francisco gostaria de ter ouvido na reunião da Arquidiocese de Lima?

Alberto Fujimori
(1990-2000)
Cumpre, desde 2009, pena de 25 anos por múltiplas violações dos direitos humanos e casos de corrupção. Foi condenado por 25 mortes e dezenas de sequestros, além de esterilizações forçadas a mais de 250 mil mulheres, em função da criação do projeto de planejamento familiar.

Alejandro Toledo
(2001-2006)
Acusado de tráfico de influência e lavagem de dinheiro, foi condenado a 18 meses de prisão preventiva. Toledo teria recebido um suborno de U$ 20 milhões da Odebrecht para favorecê-la na concessão da Rodovia Interoceânica Sul, que liga o Peru ao Brasil. O Ministério Público ingressou com pedido de extradição. O ex-presidente está foragido nos Estados Unidos.

Alan García
(1985-1990 e 2006-2011)
Em investigação em curso, está sendo apurado que García teria recebido US$ 2 milhões para facilitar a obtenção de contratos pela Odebrecht para a construção do metrô de Lima.

Ollanta Humala
(2011-2016)
Junto com a ex-primeira-dama Nadine Heredia, foi preso preventivamente por 18 meses. Em duas tentativas de concorrer à presidência, a Odebrecht teria repassado à campanha, de forma não declarada, um total de US$ 3 milhões. O próprio empresário Marcelo Odebrecht confirmou, aqui no Brasil, em sua delação à Lava Jato, o repasse.

Foto: Presidência do Peru

Tag:

Comentários

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Please enter comment.
Please enter your name.
Please enter your email address.
Please enter a valid email address.
Please enter a valid web Url.