O tempo no sul

Por Giulia Baretta Axelrud
Honorária do IFL-SP e CEO da Snaq

Desde o primeiro final de semana de maio o tempo anda diferente aqui no Rio Grande do Sul. Além da chuva, que caiu quase sem trégua, o tempo cronológico passou a andar muito rápido e muito devagar.

Muito rápido para quem tentava fugir da enchente só com a roupa do corpo. Muito devagar para quem ficou esperando ser resgatado com a família no telhado.

Muito rápido para os times de resgate que se arriscavam na correnteza para salvar outras vidas. Muito devagar para quem ficou em um abrigo esperando notícias dos parentes e amigos.

O desespero só não foi maior graças aos milhares de voluntários, de todo o Brasil, que imediatamente abdicaram do seu próprio tempo para dedicá-lo aos outros. Não teve quem não ficou mais esperançoso com tanta grandeza humana.

Agora, depois do caos inicial, o sentimento por aqui é de ansiedade pelo dia seguinte, pelo recomeço, como em um domingo que não termina.

Nas ruas de Porto Alegre, uma das maiores cidades do Brasil, os dias quase pararam. A gente espera em câmera lenta o nível do Guaíba diminuir e a água chegar nas torneiras. Centenas de milhares de pessoas esperam voltar para casa, ou recomeçar em outro lugar.

Empresas inteiras inundaram. Empresários e funcionários aguardam para saber se ainda vai ter maquinário, estoque, trabalho. E tem a espera pela reabertura do aeroporto, esse que parecia que nunca ia parar.

Mas mesmo com tantas coisas fora do controle, a passividade não é natural para o gaúcho. Ano passado, depois da enchente de setembro, uma ponte foi reconstruída pela própria população em Nova Roma do Sul.

Dessa vez, heróis anônimos apareceram por todos os lados, salvando vidas, montando abrigos e doando aquilo que poderia fazer falta na própria casa. Em Três Coroas, o povo se uniu em um mutirão para tirar a lama e arrumar uma fábrica de calçados, que já voltou a produzir. Em Santa Catarina, comunidades “adotaram” cidades gaúchas para ajudar na limpeza e reconstrução.

Os inúmeros elogios aos cidadãos e as incômodas críticas ao governo são mais que justos. Tem especial direito à crítica um povo que constrói pontes por conta própria, enquanto o Estado fracassa na simples manutenção de bombas e comportas.

O que houve aqui não foi inédito, já aconteceu em 1941 e, em uma amostra não muito distante, em 2023. Mas não deu tempo (sim, o tempo!) de revisar o sistema de defesa e planejar alternativas, mesmo com acesso a tecnologias e conhecimento suficientes para que a tragédia não fosse tão grande.

Também não foi possível evacuar ou alertar devidamente as cidades da grande Porto Alegre, quando já se sabia do enorme volume de água que vinha das outras regiões. Essa água inundou casas e empresas a 2 metros de altura – não só ali na beira do Guaíba, mas em ruas a mais de dez quadras de distância do lago.

Como não se perguntar onde estava o Estado nessa situação?

Estado esse que recebe quase cinco meses inteiros do salário de cada brasileiro, e que, por ser como é, deveria servir ao menos para articular soluções em enchentes, a nível nacional e local.

Criticar o poder público nesse caso não é ignorar que ele é feito de pessoas. Também não é hostilizar servidores, que fazem parte da comunidade. É, sim, tentar entender: por que esses mesmos servidores conseguem gerar valor quando se mobilizam no bairro junto com os vizinhos, mas não conseguiram atuar como deveriam enquanto agentes do Estado?

É fácil ignorar essa resposta quando, por acaso, as coisas vão bem. Mas é impossível ignorá-la se quisermos viver melhor.

Agora, o tempo que não foi devidamente usado por quem era responsável é duramente tirado da população. Serão anos de reconstrução, além da perda incalculável das vidas que se foram.

Felizmente, conformar-se nunca foi uma opção para o gaúcho. Os tempos andam diferentes no Rio Grande do Sul, afinal, porque é tempo de reconstrução, é tempo quem faz e nada mais.

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