Paralisados pela incerteza

As perguntas que as pessoas faziam conforme se estendiam os dias da greve dos caminhoneiros era aquela que sempre deve ser feita diante de movimentos desse tipo: quem está por trás, qual a motivação e a quem interessa essa mobilização? As respostas vêm na forma de sinais, e a incerteza prepondera. A crise pode ser atribuída a uma série de fatores: da derrocada econômica, em especial no governo de Dilma Rousseff, do impasse político que se seguiu, da fragilidade do governo de Michel Temer, do descrédito progressivo do Legislativo, da desorganização das forças de centro e do protagonismo do pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro, que apoiou mobilização. Mas o que decorrerá disso? A que resultados poderá levar movimento com tamanha envergadura, que teve o poder de paralisar o país?

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo no dia 28 de maio, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso demonstrou sua perplexidade diante de algo que ele mesmo tenta decifrar. E pontuou uma leitura: a de que não se trata de insatisfação setorial, mas “mal-estar generalizado”.

“Ela está expressando um mal-estar que a gente não sabe o que é. É um mal-estar que a gente não sabe o que é”, disse ele. O tucano completou com uma declaração forte: “Falta rumo ao Brasil”. E acrescentou, a respeito da condução do movimento, dizendo que “a chefia é móvel, não se sabe qual é o grupo que comanda”.

O economista e filósofo Eduardo Gianetti vê no movimento dos caminhoneiros o “embrião de uma rebelião tributária” decorrente da falta de autoridade do governo. A população, segundo ele, deixa de aceitar a legitimidade da máquina estatal para tributar. De acordo com Gianetti, a situação decorre da percepção de vulnerabilidade do atual governo, e isso pode levar à realização de eleições sem “clima minimamente civilizado”.

Questionado sobre a possível ruptura do tecido social, Gianetti disse: “Não vou declarar que é o início, mas a situação é muito característica de rápida disseminação, porque as pessoas estão com os nervos à flor da pele e a situação é muito instável, qualquer faísca pode deflagrar um movimento de grandes proporções”.

A comparação com a ebulição ocorrida no país em 2013 é imediata. Na época, vinte centavos (referentes ao reajuste das passagens de ônibus) acabaram se tornando algo muito maior. “Agora, foi a questão da precificação dos derivados de petróleo”, comparou o economista.

Gianetti considera que “o sistema de poder se tornou extremamente frágil, por tudo o que vem acontecendo e por tudo que a Operação Lava Jato escancarou”.

Assim como nas manifestações de junho de 2013, houve uma pauta específica que cresceu com o apoio popular. Passados os dias, grupos diversos aderiram ao movimento, e o debate original ganhou novos componentes. Carlos Alberto Litti Dahmer, presidente do Sindicato dos Transportadores Autônomos de Carga de Ijuí, chega a definir como “histórico” o estabelecimento de um piso para o frete, algo que a categoria vem pedindo desde 1999. Diz que a greve poderia ter terminado naquele momento. Mas lamenta o ingresso de temas alheios à pauta original e a caracterização política do movimento.

Preço alto pago por toda a economia

As consequências desestabilizadoras da greve levaram a manifestações de entidades como a Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), que alertou, em “carta aberta ao povo brasileiro”: “milhares de toneladas de alimentos estão ameaçadas de perderem prazo de validade, enquanto o consumidor já enfrenta a escassez de produtos”. Quando fazia apenas uma semana da greve, no dia 27, o total de 64 milhões de aves adultas e pintos já haviam morrido, enquanto 1 bilhão de aves e 20 milhões de suínos se alimentavam inadequadamente.

Mais de 300 prefeituras gaúchas paralisaram suas atividades no final da primeira semana da greve (25 de maio). Foram suspensos os serviços que utilizam combustíveis, e os prefeitos garantiram apenas os atendimentos na área da saúde.

Conforme a Federação das Associações dos Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), a paralisação por um dia também foi movida pela alta nos preços dos combustíveis e pelo risco de cortes no repasse, aos municípios, da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). Além disso, conforme a entidade, reflete o apoio dos prefeitos aos caminhoneiros.

Analistas e autoridades falam em “forças ocultas” que estariam por trás da greve. A expressão remete ao presidente Jânio Quadros em 1961, quando renunciou e abriu caminho para, em 1964, ocorrer o golpe militar e o começo da ditadura, que duraria até 1985.

O presidente da Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam), José da Fonseca Lopes, chegou a dizer, no final da tarde do dia 28, que caminhoneiros autônomos não conseguiam voltar ao trabalho porque estavam sendo ameaçados “de forma violenta por forças ocultas”.

“São pessoas que querem derrubar o governo”, alertou o presidente da Abcam.

Em entrevista coletiva, ele disse: “Não é mais o caminhoneiro que está fazendo greve. Tem um grupo muito forte de intervencionistas. Vi isso aqui em Brasília. Estão prendendo caminhão em tudo que é lugar. São pessoas que querem derrubar o governo. Nem eu nem os nossos caminhoneiros autônomos têm nada a ver com essas pessoas. Eles estão sendo usados para isso”.

Infiltração política

O governo já vinha sustentando que haveria “infiltração política” desestabilizadora, conforme o ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha. No dia 29, o mesmo Padilha fazia o diagnóstico segundo o qual o movimento havia arrefecido, restando agentes e insufladores políticos.

O jornal O Estado de S. Paulo teve acesso aos dados de mensagens postadas em três grupos de WhatsApp dos caminhoneiros, nos quais se imiscuiu. A reportagem constatou certa decepção dos caminhoneiros porque o Exército não assumiu o poder. Também fica clara a intenção de simplesmente derrubar o atual governo, de Michel Temer. Uma das mensagens é ilustrativa: “Cadê o Exército? O prazo acabou. Vai terminar tudo em pizza outra vez?” Também há textos em que caminhoneiros pedem à população que abandone as filas nos postos, desista de abastecer e saia às ruas para protestar, em uma greve geral, pela remoção do atual governo.

Como dizem os analistas, a greve impôs o mal-estar e a sensação de faltar rumo e de haver a corrosão da institucionalidade no tecido social. As forças de esquerda estiveram ao largo das manifestações, nas quais havia faixas de apoio a uma eventual intervenção militar. A clara preocupação de todos se dá em relação a qual seria a alternativa viável para uma situação de caos e de ilegitimidade política. Ninguém apresentou a resposta, o que tornou a situação ainda mais perturbadora.

A greve terminou no dia 30 de maio. O governo federal fez um “sacrifício no orçamento” e reduziu o preço do diesel em 46 centavos por litro. Também determinou a isenção da cobrança de pedágio para eixo suspenso, a garantia de 30% dos fretes para autônomos e valores mínimos para fretes. Aos poucos o abastecimento – de combustível e de suprimentos – foi retomado no país, mas a greve deixou um rastro de perdas e prejuízos pelo caminho.

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