CONTEÚDO EXCLUSIVO: A PRÓXIMA REFORMA

Depois das mudanças na Previdência, que devem ser aprovadas em breve, outra medida é essencial para o Brasil avançar. É a Reforma Tributária, esperada pela sociedade e já em discussão por Executivo e Congresso

 

Aprovada em dois turnos pela Câmara dos Deputados, a reforma da Previdência avança rumo à sua concretização. No momento, está em discussão no Senado Federal e tem aprovação prevista para este semestre, consolidando um importante passo para dar ao país condições necessárias ao equilíbrio das contas públicas e à retomada do crescimento. No entanto, essa não é a única medida para dinamizar nossa economia. É preciso seguir com a agenda reformista, mexendo em estruturas que atrasam nosso desenvolvimento. E o próximo alvo já está definido: o complexo sistema tributário.

A reforma tributária cresce no horizonte da Praça dos Três Poderes, em Brasília. No Parlamento e no Palácio do Planalto, propostas para mexer na gigantesca burocracia de impostos já estão em debate. Um tema há duas décadas discutido, mas nunca concretizado. Na vida real, sobrecarrega os contribuintes — em 2018, chegou a 35,07% do Produto Interno Bruto (PIB). Com isso, cada brasileiro precisou trabalhar 128 dias apenas para estar em dia com os impostos.

A alta carga tributária diminui a competitividade do país e encarece diversos produtos e serviços — alguns deles chegam a ter mais de 70% de seu valor em impostos. Além disso, a profusão de regras, alíquotas e tratamentos diferenciados para vários setores, bem como as leis próprias de cada estado e município para os tributos de sua competência, tornam o cenário ainda mais caótico. E mais: trazem insegurança jurídica.

Não há mais tempo a perder. É consenso entre a sociedade de que precisamos avançar em uma reforma tributária, simplificando o sistema, corrigindo distorções e reforçando as condições para que o Brasil volte a crescer.

Histórico de tentativas

CSLL, ICMS, IR, IPI, IPVA, ISS… Uma verdadeira sopa de letrinhas que compõem o intricado sistema de taxas, impostos e contribuições no país. São pelo menos 66 tributos federais, estaduais e municipais, incidindo em diversas dimensões da vida do brasileiro. A Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), por exemplo, é cobrada pela União sobre a receita bruta das companhias e das importações. Já o Imposto sobre serviços de qualquer natureza (ISS) é de competência dos municípios, recolhendo valores da prestação de serviços por empresas e profissionais autônomos.

De acordo com o relatório Doing Business, do Banco Mundial, uma organização brasileira de porte médio leva em torno de 1.958 horas por ano apenas com a burocracia tributária. O emaranhado de normas dificulta a vida de muitos negócios e encarece produtos e serviços para o cidadão. Cenário que não é novo — e não faltaram tentativas para mudá-lo ao longo das duas últimas décadas.

Por duas vezes, o governo de Fernando Henrique Cardoso tentou reformar o sistema tributário. Então deputado federal, o gaúcho Germano Rigotto presidiu a comissão especial da Câmara que discutiu o tema. “Fizemos centenas de reuniões no país inteiro, ouvindo técnicos e setores produtivos. Produzimos uma proposta que até hoje é das mais atualizadas e completas”, relembra.

A proposta, entretanto, não avançou, sendo limitada a mudanças pontuais. O mesmo aconteceu durante o governo Lula, que, em três ocasiões, sugeriu modificações na organização dos tributos. Sem consensos entre os diversos atores envolvidos nos debates, a reforma permaneceu como bandeira de líderes políticos e da sociedade, mas sem sair do papel.

Segundo Rigotto, esse quadro se deve à falta de um desejo real dos governos em enfrentar o tema. “Nem FHC, nem Lula, nem Dilma, tampouco Temer realmente desejaram fazer a reforma. E no sistema presidencialista de coalizão, não há verdadeiro avanço sem o comando político do Palácio do Planalto”, afirma o ex-governador do Rio Grande do Sul e, hoje, presidente do Instituto Reformar, dedicado a estudos tributários e políticos.

Em 2019, os ventos sopram em outra direção. O presidente Jair Bolsonaro, desde a campanha, vem manifestando uma posição pró-reforma. A pauta, que está em definição no Ministério da Economia, também ganha força no Congresso Nacional. Em julho, a Câmara dos Deputados instalou uma comissão especial para discutir a PEC 45/2019, do deputado federal Baleia Rossi (MDB/SP). No Senado, parlamentares têm defendido a PEC 110/2019, baseada em projeto do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB/SP). Nas ruas, o assunto ganha corpo e apoio da população, formando condições ideais para essa agenda avançar.

Convergências e polêmicas

As propostas em discussão no Congresso avançam principalmente na simplificação dos tributos sobre consumo. Formulado pelo Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), o texto do deputado Baleia Rossi propõe a criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), de incidência nacional e que substituiria IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS. De acordo com o grupo, o novo tributo segue o modelo de Imposto sobre o Valor Adicionado (IVA), adotado em mais de 150 países.

Liderado pelo economista Bernard Appy, o CCiF afirma que esse regime traria base maior de incidência, crédito amplo, cobrança no destino (o que eliminaria a guerra fiscal) e estrutura eficiente de ressarcimento de créditos tributários acumulados. “Um sistema com essas características e com alíquota uniforme resolve todas as distorções do atual modelo de tributação de bens e serviços”, aponta o diretor da entidade.

Em linha semelhante vai o projeto capitaneado pelo Senado. O IBS viria para substituir, ainda, o PASEP, IOF, CIDE e Salário Educação. Além disso, seria criado um Imposto Seletivo monofásico (ISE) sobre energia elétrica, combustíveis, telecomunicações, veículos, bebidas e cigarros. Como no texto do CCiF, um comitê gestor faria a administração e distribuição da arrecadação entre União, estados e municípios.

“Esse modelo melhoraria a concorrência entre as empresas, diminuiria o custo de produção, de contratação e dos tributos sobre produtos e serviços para todos os consumidores, especialmente os mais pobres, criando um círculo virtuoso na economia”, avalia o ex-deputado Luiz Carlos Hauly. Outra vantagem desse sistema, segundo o economista, é o combate mais eficiente à sonegação, uma vez que a cobrança do IBS seria totalmente eletrônica, retendo o tributo no ato da transação de compra e venda.

“Reforma criaria um círculo virtuoso na economia”, projeta Luiz Carlos Hauly

Ainda em elaboração pelo Executivo, a proposta do governo Bolsonaro também converge na criação de um imposto único sobre o consumo, o IVA, que agregaria todos os tributos federais. Além disso, há expectativa de alterações na cobrança do Imposto de Renda, com a diminuição da alíquota para empresas, fim da dedução de gastos em saúde e educação e ajuste faixa de isenção pela inflação. No entanto, antes mesmo de ser apresentado, um ponto do possível projeto causou polêmica: a volta de uma espécie de CPMF.

A proposta de um imposto sobre movimentações bancárias, voltado ao financiamento da Previdência, era defendido enfaticamente pelo então secretário da Receita Federal, Marcos Cintra. A repercussão do tema, reprovado pela sociedade e congressistas, levou à sua queda. “A recriação da CPMF ou aumento da carga tributária estão fora da reforma por determinação do Presidente”, disse Jair Bolsonaro, ao anunciar nas redes sociais a demissão do chefe do órgão.

Defesa enfática de imposto semelhante à CPMF levou à queda do secretário da Receita Federal, Marcos Cintra

Embora rejeitado pelos principais atores políticos, o vislumbre de um tributo como a CPMF é defendido pelos empresários que compõem o Instituto Brasil 200. O grupo propôs a criação de um imposto único, com alíquota de 2,5% sobre todas as movimentações em conta corrente, extinguindo dezenas de taxas. A simplificação radical, entretanto, é vista com ressalvas pelo presidente da Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, que afirmou ser “marquetagem ou falta de conhecimento”. O executivo defende a ideia de que é preciso aprovar uma reforma tributária possível para depois aprimorá-la para algo mais amplo.

Uma proposta solidária

Vista como necessária, a simplificação da tributação sobre o consumo é considerada insuficiente pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal (ANFIP). “As propostas no Congresso não redistribuem a carga tributária. Elas continuam tendo uma carga altamente regressiva”, alerta Décio Bruno Lopes, que preside a entidade.

A associação afirma que, além de organizar a questão do consumo, é preciso avançar sobre a renda e o patrimônio. O grupo lançou uma proposta de “reforma tributária solidária”, de caráter progressivo, com uma nova tabela de alíquotas do Imposto de Renda e a retomada de taxas sobre lucros e dividendos, revogadas em 1995.

Paulo Skaf, presidente da Fiesp, diz que é preciso aprovar uma reforma tributária possível para depois aprimorá-la para algo mais amplo

Estados e municípios querem protagonismo

Outra questão que deve gerar intensos debates é a participação de estados e municípios na reforma. Por um lado, há o temor de que esses entes sejam excluídos do texto final, que acabaria por unificar apenas os tributos federais. Por outro, secretários pedem mudanças como a exclusão da União da gestão do IBS, além da manutenção de regimes especiais em algumas regiões, como a Zona Franca de Manaus.

“Ou se mexe em toda a estrutura tributária do país, ou se estará apenas lidando nas perfumarias”, critica Germano Rigotto. Para ele, o tema do ICMS é central para unificar as legislações do imposto nos 27 estados e no Distrito Federal, reduzindo assim a guerra fiscal.

Estados e municípios veem nessa agenda uma oportunidade para revisar o Pacto Federativo, retirando o protagonismo que hoje é da União. De acordo com dados de associações municipalistas, 57% dos tributos arrecadados ficam com o Governo Federal, enquanto apenas 18% retornam às cidades. Os secretários estaduais da Fazenda apresentaram, no começo de agosto, uma emenda ao projeto que tramita na Câmara, buscando reequilibrar a partilha de recursos.

Expectativa pelas mudanças

Com o avanço da reforma da Previdência, ganha corpo também uma proposta única de texto sobre os tributos. Congresso e Executivo anunciaram a intenção de costurar uma só reforma. O tema foi abordado em reunião dos presidentes das casas, Rodrigo Maia, da Câmara, e Davi Alcolumbre, do Senado, com o ministro da Economia, Paulo Guedes.

“Nós fizemos um acordo e um entendimento para construir um texto que atenda aos interesses do parlamento e do governo para desburocratizar essa questão tributária”, revelou Alcolumbre, após o encontro. Enquanto isso não acontece, empresários e sociedade aguardam com expectativa as mudanças.

“A reforma tributária é um tema básico para a nossa competitividade”, destaca o empresário Jorge Gerdau Johannpeter. Na mesma linha vai o presidente em exercício da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Paulo Afonso Ferreira: “Trabalhamos há muitos anos e pensamos nessa reforma para o Brasil. Temos mais chances de fazer isso agora. Ela tornará nossa indústria mais competitiva”, sublinhou durante reunião do Fórum Nacional da Indústria.

Para o advogado e professor de Direito Tributário Marcio Patussi, “seja qual for o modelo adotado, é preciso criar um consenso em torno da criação do IBS”. Ele projeta que, no longo prazo, o PIB brasileiro poderá ter um avanço de 10% com a reestruturação. “A queda da burocracia facilitará para que todo novo negócio seja simplificado, melhorando a produção e, consequentemente, acarretando geração de empregos”, afirma.

Todavia, o especialista alerta que as propostas não devem perder de vista alterações no Imposto de Renda. “Há um descompasso em relação ao que é tributado. Não há atualização nos últimos 10 anos de forma a corrigir a tabela do IR. Hoje, trabalhadores que ganham a partir de R$ 1.400 já entram na primeira faixa de contribuição”, diz Patussi.

Já o ex-deputado Luiz Carlos Hauly avalia que o país seria capaz de ficar entre os 10 melhores ambientes tributários do mundo. “Temos plenas condições de fazer um amplo entendimento nacional para aprovar o melhor texto tributário de nossa história”, pontuou.

Independentemente dos detalhes, é fundamental que ocorra uma profunda reformulação de nosso sistema de tributos. O momento é favorável às transformações necessárias para que o Brasil volte a crescer — e a reforma tributária é essencial nessa engrenagem. Executivo, Congresso e sociedade devem convergir e alinhar seus pontos de vista, buscando o texto ideal para que o país aproveite mais essa oportunidade — e reencontre o caminho do desenvolvimento.

 

COMO É LÁ FORA

Enquanto o Brasil pena com sua enorme complexidade tributária, outros países possuem sistemas mais simples para cidadãos e empresas. Conheça três exemplos:

Estados Unidos

O sistema tributário norte-americano reflete a natureza federalista do país e, por vezes, se assemelha à estrutura brasileira. A renda é a base dos impostos federais, enquanto consumo e propriedade ficam com estados e municípios. O tributo varia em cada ente federativo e, em alguns casos, pode não existir. O Federal Income Tax, sob responsabilidade da União, deve ser declarado e pago anualmente pelo contribuinte. Já o Income Tax, cobrado pelos governos estaduais e municipais, gera créditos ao cidadão para serem usados no pagamento do imposto federal. Há ainda o Sales Tax, cobrado na aquisição de produtos ou serviços e possui alíquota fixa em grande parte do país, e o Property Tax, destinado às propriedades.

O governo Trump fez, em 2017, uma importante reforma tributária. Considerada a maior revisão da legislação em décadas, impactou principalmente no mercado. A principal mudança está na redução da alíquota federal para empresas, caindo de 35% para 21%. A reforma tornou o sistema tributário norte-americano mais simples, garantiu competitividade e incentivou a criação de empregos no país.

Chile

Inspiração para o Brasil, o sólido sistema tributário chileno apresenta-se como o mais simples entre os países latino-americanos. O principal tributo, o Imposto sobre Valor Agregado (IVA), é o grande diferencial. Similar ao praticado em países da União Europeia, Argentina e Uruguai, engloba as transações comerciais, produtos e serviços. A alíquota única, de 19%, facilita e desonera os processos para o contribuinte.

Por outro lado, o Imposto de Renda dos cidadãos é alto. Pode chegar a 36,4%, equilibrando a balança fiscal do país. No Brasil, atinge 27,5%. Já o Imposto de Renda corporativo varia entre 25% e 27%, conforme o regime fiscal enquadrado pela empresa.

Reino Unido

Assim como no Chile, os tributos sobre produtos e serviços estão concentrados no Value Added Tax (VAT). O chamado “imposto sobre valor acrescentado” de todo o Reino Unido tem alíquota única de 20% e pode ser deduzido para turistas que morem fora da União Europeia. Estão sujeitos ao reembolso do VAT diversos bens adquiridos para uso pessoal, como roupas, sapatos e eletroeletrônicos.

O imposto sobre a renda na Inglaterra adota tabela progressiva. O Income Tax varia de 20% a 50%, conforme a faixa salarial. O National Insurance Contribution, por sua vez, auxilia o pagamento de benefícios previdenciários – a rigor, se assemelha às contribuições previdenciárias cobradas pelo INSS no Brasil.

Shopping em Londres (Inglaterra): tributos sobre produtos e serviços estão concentrados no “imposto sobre valor acrescentado”

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