De como, sob os auspícios do MDB, o Brasil ganhou a democracia e perdeu a República

Não há nada mais valioso no patrimônio do MDB, do qual o PMDB é o reconhecido sucessor, do que a estratégia de reconquista da democracia no Brasil; do que o modo como, sob a liderança de Ulysses Guimarães, Teotônio Villela, Tancredo Neves, Pedro Simon, José Sarney, Franco Montoro e tantos outros, ela foi levada a bom termo, coroando-se, ao final, com a convocação da Assembleia Nacional Constituinte de 1987 e a consequente promulgação da Constituição de 88. Nessa luta, nas palavras de ordem que a faziam vibrar e no programa de reconstrução do Brasil que a vertebrava, se encontravam os ideais de consolidação de um verdadeiro Estado de Direito, de desenvolvimento de uma economia próspera e livre, de construção de uma sociedade justa e solidária, bem como a firme convicção que o esforço a ser expendido nessas três frentes só teria sucesso se sustentado por um sistema político plural, competitivo, ideológica e partidariamente aberto, mas fundado na lei e, em todas as suas variantes programáticas, voltado à promoção dos autênticos interesses da sociedade brasileira.

Nestes trinta anos, em todas essas frentes, a História entregou pouco do que prometia e muito menos do que anelavam nossas esperanças. No entanto, em nenhum desses quadrantes nosso fracasso foi maior, nem nossa decepção mais profunda, do que com relação ao que deveria ser a base operacional desse projeto de reconstrução do país: o sistema político-partidário instituído a partir de 1988. Sem falar do impeachment de Fernando Collor, deixando de lado denúncias e indícios de corrupção presentes nas estranhas demonstrações de desproporcional poderio econômico em eleições, da vida faustosa e dos processos judiciais que maculam os currículos de inúmeros parlamentares e lideranças políticas, atendo-nos tão só ao hoje mais clamorosamente evidente ? ao revelado pelas investigações da Operação Lava a Jato e demais iniciativas do Ministério Público Federal, às provas produzidas na vara do Sr. Moro e às já conhecidas evidências constantes dos processos que tramitam no Supremo Tribunal Federal – não temos como fugir do incontestável e envergonhado diagnóstico da espraiadíssima corrupção que, monstruosamente, desfigura a política nacional. Essa constatação da derrota do espírito republicano e de perda da própria República ? pois de que valem instituições cujo espírito sumiu na areia movediça dos conciliábulos escusos e cujo funcionamento passou a ser sistematicamente dependente do dinheiro lubrificador das negociatas políticas?  – é o triste juízo que, seja explícita e publicamente, seja íntima e secretamente, culpados ou inocentes, estamos todos a fazer.

Em uma situação como essa ? diante da clamorosa decomposição do sistema político, cujas relações com o setor privado vêm sendo mantidas, em todos os partidos e em todas as modulações do espectro ideológico, nos piores casos por meio de negócios flagrante e flagradamente criminosos, ou, nos casos mais inocentes, graças à obtenção de sobrevidas eleitorais humilhantemente obtidas e sustentadas por gorjetas empresariais ? o único caminho e a maior prioridade nacional é o da recuperação da República, que nossa desvirtuada e desmazelada democracia está a pôr a perder.

Até agora, porém, no coração do sistema político nacional, só há olhos voluntariamente vendados. A continuar assim, sairemos do período agudo com a mesma infausta e tóxica cultura política: com a septicêmica doença das polarizações anacrônicas e da corrupção endêmica. Não, não se trata de voltar ao romano tempo de Catão, nem às sanguinárias pretensões de virtude de Robespierre, o Incorruptível, mas de simples, mas determinada e intransigentemente, tratar de aprender com a dura experiência atual. Para isso,  sem subterfúgios e evasivas, é preciso, antes de mais, a coragem de olhar o negativo nos olhos. Depois, tratar de criar mecanismos institucionais novos que permitam separar confiavelmente o interesse público do privado e prevenir a espantosa promiscuidade de agentes políticos e grandes empresários, onde não se sabe onde começa a venalidade dos primeiros e o espírito corruptor e corsário dos segundos.

Passo decisivo nesta direção seria a convocação de uma nova e exclusiva Constituinte, como preconizado oportuna e judiciosamente pelos senhores Carvalhosa, Bierrenbach e Dias em manifestação recente. Mas, enquanto tal remédio mais profundo não se obtenha, um passo imediato e, em princípio, mais simples, recomendado pelo mais básico senso de sobrevivência política, é o de abrir dentro dos partidos ? de esquerda, de direita, do centro – um processo sincero, profundo e desapegado de autocrítica, de revisão de procedimentos e de renovação de lideranças.

Olhando esse quadro da perspectiva das forças politicamente dominantes no Rio Grande do Sul, que, na paisagem deserta de espírito público com que nos deparamos, terá traços que o excepcionam, este esforço de regeneração política será, quem sabe, mais fácil de empreender, pois, no PMDB, Pedro Simon, o líder histórico de nossa grei, é das poucas figuras nacionais que dispõem da lucidez e da coragem a tanto necessárias, assim como da credibilidade pessoal que essa empreitada renovadora exige. Mas, voltando os olhos para a esquerda do espectro político, também é de justiça reconhecer que Olívio Dutra, fundador e liderança histórica do PT, é pessoa cuja honestidade pessoal e compromisso republicano representam um capital político moralmente irreprochável.

Elevando, porém, a perspectiva e mirando além dos limites da província meridional de quem escreve, não cabe duvidar que neste nosso imenso Brasil, pelo menos em certas frequências do dial político nacional, haverá quem, livre das nódoas do desastre político-moral que sobre nós se abate, possa abrir a luta interna pela regeneração e renovação partidárias. Isto é o que cabe esperar do respeitável fundo programático do PSDB de São Paulo, das históricas reservas de civismo de Minas, dos herdeiros no Nordeste do ideário de Teotônio Vilela, dos potenciais de patriotismo que  certamente se encontram em personalidades que, ainda que sutil e discretamente, na Bahia e no Rio de Janeiro, nos ligam, preservada e preservadoramente, às origens fundadoras da nacionalidade, das quais, aliás, dão bom testemunho, cada um a sua maneira, Caetano Veloso e Fernando Gabeira.

No desconcerto destes dias tristes, ao contrário do que vem sendo predominantemente apregoado, o mais urgente e o historicamente mais decisivo, é menos o já encaminhado trato da crise econômica do que a reforma institucional e ética do Estado. Obra grande, longa e difícil, para cuja consecução a tarefa mais premente é a de encontrar a guia de homens ciosos da vergonha e da respeitabilidade nacional, assim como, sobretudo, a de ativamente descobrirmos e mobilizarmos o tanto que desse ideal cada brasileiro e cada brasileira de boa vontade há de encontrar em si mesmo. Este é o caminho que nos pode devolver ao que, na aziaga conjuntura presente, mais carecemos: o trabalho de refundação dos partidos, o esforço de reconquista dos valores da República, de retomada da política como só comprometida com os superiores interesses do Brasil: com prosperidade, segurança e justiça para os que hoje, todos nós, formam o pobre, desiludido, nauseado e, por ora, tão só in pectore, revoltado povo brasileiro.

Por JOÃO CARLOS BRUM TORRES, Professor de Filosofia na UCS, professor titular aposentado da UFRGS, secretário de Planejamento do Rio Grande do Sul nas gestões de Antônio Britto e Germano Rigotto

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