De novo assim, Argentina?

A Argentina vive uma crise que vai muito além do futebol e supera até a contenção de um Javier Mascherano. É a própria economia do país que vive momentos de alta tensão, com respingos inevitáveis na sociedade, na política e até na autoestima da população. O assunto tem sido debatido com tanto fervor quanto a decepção provocada pela desclassificação prematura da seleção de futebol na Copa da Rússia.

O elemento emocional entra na própria relação do argentino com a moeda americana. “O dólar é a proteção que se busca contra uma relação traumática que os argentinos têm com o peso, principalmente depois da violenta crise no início dos anos 2000. O argentino vê o dólar como uma âncora”, diz o psicólogo social argentino Marcelo Hernández, explicando que a divisa aparece como forma de resguardo financeiro, e isso pressiona a economia.

O problema, porém, vai além da volúpia com que os argentinos correm atrás da moeda americana ou até mesmo a guardam debaixo do colchão diante do pesadelo de crises passadas. Frustrados por não verem a inflação contida (o ritmo, ao contrário, está cada vez mais acelerado), há uma tentativa de redução nos gastos que afeta toda a economia, provocando baixa procura e ainda mais desequilíbrio, com fechamentos de empresas em um conhecido e traumático ciclo vicioso. Nas ruas de Buenos Aires, é comum encontrar portas de casas comerciais, bares e restaurantes fechadas e varejistas reclamando que diminuiu sensivelmente o número de clientes, sendo que algumas lojas ficam às moscas.

Crise sobre crise

Se há uma “herança maldita” do governo anterior, que costumava maquiar índices econômicos e gastar além da conta, o atual presidente, Mauricio Macri (liberal e de oposição à antecessora Cristina Kirchner), agravou determinadas situações. Alguns aumentos de tarifas públicas foram estabelecidos em até 500%, e o resultado disso é a inevitável defasagem dos salários. Somado à desvalorização do peso em relação ao dólar, isso impacta na procura e nos preços.

“Macri enfrenta problemas herdados de Cristina Kirchner e problemas que ele próprio criou”, diz Ariel Palacios, analista da Globonews com escritório em Buenos Aires. O jornalista define a situação como “complexa”. Segundo ele, por um lado, há a inflação advinda do governo anterior, que começou a crescer em 2006, se prolongou e subiu cada vez mais por uma década, com a elevação da pobreza e do déficit fiscal. Por outro, havia um entusiasmo moderado em relação a Macri por parte de setores empresariais, mas principalmente por pessoas de fora do país.

“Os empresários do exterior, como não viam os argentinos investindo em seu país, mantendo seu dinheiro fora da Argentina ou guardando dólares no colchão, resolveram não investir lá”, analisa Palacios. “Se os próprios argentinos não confiavam no seu país, por que os investidores internacionais iriam confiar?”, questiona. Ele acrescenta que o governo Macri garantiu que viria uma chuva de investimentos, mas isso não aconteceu. Houve muitos anúncios de empresários internacionais dizendo que aplicariam na Argentina, mas depois não se concretizaram.

Se o dinheiro não chegava de fora, Macri, conforme o analista, “dava suas próprias mancadas”. “Ele aumentou os preços dos serviços públicos e os impostos. Foi o mesmo erro que o ex-presidente Fernando de la Rúa cometeu quando tomou posse em 1999 e colocou a pique a recuperação da recessão recebida de Carlos Menem”, destaca. E complementa: “Ao elevar as tarifas, Macri foi estimulando a inflação, e a inflação foi incentivando a alta do dólar. A moeda americana é uma questão muito delicada na Argentina, e uma coisa foi levando à outra. A situação se complicou cada vez mais”.

 Dificuldades políticas e fiscais

O governo Macri chegou a fazer ajustes em alguns gastos públicos, mas em outros foi aumentando. Com isso, o déficit fiscal cresceu cada vez mais. A economia argentina se manteve sem competitividade, as importações foram aumentando, e as exportações decaíram. Todo esse quadro adverso ganha ainda outro elemento, de conotação política: o governo não tem maioria no Congresso. Mesmo que tenha ganho as eleições parlamentares no ano passado, elas eram parciais. Aumentou a participação do governo na Câmara e no Senado, mas ainda em número aquém aos dos oposicionistas. O que atenua essa situação é que a oposição está dividida. O governo não tem sucesso em emplacar seus projetos, mas o peronismo (oposição) também não consegue se unir para ações mais contundentes e desestabilizadoras.

Toda a economia se ressente desse quadro amplamente adverso. A parte mais frágil e evidente é a dos pequenos comerciantes, os primeiros a sentirem o golpe das contas a pagar, cargas trabalhistas elevadas e contexto de alta desconfiança. Conforme a Confederação Argentina da Média Empresa (CAME), as vendas do varejo caíram 2,5% nos primeiros cinco meses deste ano.

A crise foi tomando proporções crescentemente perigosas, e a descrença dos argentinos provocou uma sensação de progressão geométrica. O sociólogo Ricardo Rouvier identifica uma “quebra” na confiança a partir do descrédito no governo, que “em curto período descumpriu a promessa de promover a recuperação econômica do país”. Em abril, iniciou-se uma corrida cambial que levou à depreciação de quase 35% do peso somente neste ano. O governo, então, capitulou, tomando uma atitude que era tabu para os argentinos: pediu empréstimo ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Reconheceu também que a inflação de 2018 chegaria aos 27% – perto dos antes impensáveis 30%, o dobro da meta máxima, de 15%.

Clima de desesperança

Na carona da inflação, outros índices passaram a assustar os argentinos. Em entrevista coletiva, o presidente chegou a implorar para que as pessoas “não gastem mais do que podem”. O desemprego já se aproxima dos 10%, e a taxa de juros teve de ser elevada a 40% diante da desvalorização do peso.

De acordo com Rouvier, com tudo isso, estabeleceu-se a desesperança. Acuado, o governo respirou com o remédio mais impopular para o país que viveu há duas décadas sua mais grave crise. Recebeu a injeção de US$ 50 bilhões do FMI. Agora, resta a dúvida: como esse crédito será utilizado? Os analistas imploram para que haja o necessário estímulo à produção.

As centrais sindicais, que tradicionalmente se alinham a governos peronistas e infernizam administrações de cunho liberal na economia (como seria, em tese, a de Macri), parecem estar dando prazo para o governo, até porque ele não pisou fundo em medidas como privatizações. Pelo contrário, até encampou estradas. O problema é: até quando seria esse prazo em que se utilizam da moderação?

“O comportamento das centrais sindicais tem sido ambíguo. Tiveram um flerte com Macri no início do governo, mas já fizeram três greves gerais, das quais uma foi um fracasso. Por um lado, elas negociam com o governo e não o botam totalmente contra a parede, mas também não são grandes amigas dele. Há momentos de proximidade e momentos de tensão”, pondera Ariel Palacios.

A política sindical oposicionista tem sido praticada de forma constante apenas pelas organizações mais de esquerda. A questão é que esses grupos são minoritários. Os majoritários estão nas mãos do peronismo, que foi responsável direto pela abreviação dos mandatos de presidentes como Raúl Alfonsín e Fernando de la Rúa, ambos da União Cívica Radical (UCR), opositora ao Partido Justicialista (PJ) que é peronista. Há uma desconfiança de que o aprofundamento da crise leve o peronismo a repetir essa atuação contra Macri.

Ninguém, por ora, cogita a abreviação do governo atual. As próximas eleições presidenciais ocorrerão em outubro do ano que vem, e a crise provoca também nisso alguma incerteza. Mauricio Macri deve tentar a reeleição, mas os oposicionistas do peronismo ainda não têm um nome. O que acontecerá lá na frente ainda é uma incógnita.

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