DEPOIS DA LAVA JATO, COMPLIANCE

Marco para a sociedade, a Lava Jato transformou o Brasil. Mas as consequências não ficaram restritas ao setor público. No ambiente privado, movimentos de autorregulação e fortalecimento dos programas de compliance foram algumas das – positivas – consequências.

O descortinamento do maior esquema de corrupção do Brasil, que envolveu políticos e empresas públicas e privadas dos mais variados ramos, deixou um legado transformador para o ambiente empresarial. Pode-se dizer que o país vive, hoje, a era pós-Lava Jato. A maior operação contra a corrupção desencadeada em território nacional – e possivelmente no mundo – foi o gatilho para a mudança definitiva e irreversível de comportamento por parte de pequenas, médias e, sobretudo, grandes companhias.

Sede da Odebrecht, em São Paulo: empresa mais que triplicou o valor destinado a compliance.

Embora não fosse novidade, o compliance entrou de vez no visor do empresariado brasileiro, passando a pautar as relações entre o mercado e o poder público. A Lei Anticorrupção, editada em 2013, colocou o peso do Estado sobre negócios escusos e previu penas mais rígidas às empresas que praticarem atos lesivos contra a administração pública. Esse novo cenário provocou um movimento de autorregulação e de fortalecimento de controles administrativos, jurídicos e operacionais nas corporações.

Dois dos principais alvos da Lava Jato, a Odebrecht e a Petrobras viram suas reputações se esvaírem com notícias diárias envolvendo seus diretores em atos de corrupção. Para tentar reconstruir suas imagens, assumiram compromissos públicos de abandono de práticas ilícitas e passaram a investir em planos anticorrupção.

As receitas de ambas as gigantes para saírem da crise de reputação e se reposicionarem são parecidas: afastaram altos executivos do comando da empresa e reavaliaram as listas de fornecedores. Da mesma forma, investiram em compliance, revisaram normas e procedimentos internos, implantaram canais de denúncia e criaram comitês independentes para apuração de casos de desvio de conduta.

Isso se refletiu, na Petrobras, em um fortalecimento do setor de governança e conformidade – ganhou status de diretoria em 2015 e, dois anos depois, passou a contar com 300 profissionais. A Odebrecht, por sua vez, entrou em recuperação judicial e viu seu faturamento e seu quadro funcional despencarem. Mesmo assim, há dois anos, fortaleceu o departamento de integridade e mais que triplicou o valor destinado à área – tudo para tentar se recompor no mercado e poder firmar novos contratos.

Para o sócio-diretor da Medeiros, Santos e Caprara Advogados, João Adalberto Medeiros Fernandes Júnior, a Lava Jato e a consequente Lei Anticorrupção representaram efetivos ganhos para a sociedade. Para o especialista, o legado está na transformação da cultura. “Não só a transparência é prestigiada, mas também um espírito de idoneidade geral no trato com a coisa pública. O estímulo a condutas éticas nas relações empresariais é um legado que se deve comemorar”, enaltece.

O famoso “jeitinho brasileiro” cedeu e começou a dar lugar à lisura, à ética, à transparência, à integridade. E essa mudança se reflete no dia a dia dos colaboradores. Estudos e pesquisas acadêmicas apontam que um ambiente de trabalho organizado, estruturado, harmônico e com diretrizes claras e objetivas proporcionam um nível mais elevado de satisfação aos profissionais.

Estruturas de integridade e compliance, de acordo com Medeiros, transmitem uma mensagem de seriedade, comprometimento social e imparcialidade. “As organizações que adotam programas desta natureza não necessariamente possuem os ambientes de maior satisfação entre trabalhadores, mas a aplicação de políticas dessa natureza podem refletir direta e indiretamente nos índices de satisfação dos empregados, salienta.

A opinião de Medeiros vai ao encontro do CEO do Grupo Verde Ghaia, Deivison Pedroza. “Trabalhar em uma empresa ética, honesta e íntegra, com bons programas de integridade e de compliance traz inúmeros benefícios para os seus colaboradores e para a própria organização”, disse [leia a entrevista completa com Pedroza no box das próximas páginas].

E um dos caminhos para a criação e o desenvolvimento de programas de compliance nas empresas está na construção de uma política sólida de integridade e transparência. Para especialistas, o investimento em consultorias especializadas e o aperfeiçoamento permanente de pessoal são alguns dos elementos fundamentais para o fortalecimento das divisões de compliance das empresas. A criação e manutenção de comitês e departamentos internos que estabeleçam e cultivem políticas de transparência, imparcialidade e probidade administrativas, de gestão e de pessoal também fazem parte dessas iniciativas.

Também para as pequenas

Compliance, no imaginário de grande parte da população, pode remeter apenas a grandes companhias e setores altamente sofisticados. Entretanto, a realidade é outra. A integridade passou a fazer parte do cotidiano de todas as empresas – das micro às gigantes. “Mesmo as pequenas, que não possuem recursos para investimentos em setores estruturados de compliance, podem e devem adotar medidas elementares em suas gestões, implementando uma cultura empresarial positiva, ao encontro da lisura e da ética profissional”, explica Medeiros.

Em outras palavras: não é imprescindível a uma companhia a implantação de uma estrutura, como departamento ou divisão, de integridade. No entanto, a ela cabe estar acordo com o ordenamento jurídico e ter a atenção devida às normas e preceitos que norteiam as relações entre empresas, com o mercado e, principalmente, com o poder público. Um bom guia está na elaboração de manuais de condutas e boas práticas – aplicável e ao alcance dos micro e pequenos negócios.

Exemplo a ser seguido

Mesmo antes dos desdobramentos da Operação Lava Jato, empresas de diversos segmentos já possuíam códigos de conduta consolidados e setores voltados à integridade e à transparência. Multinacionais, instituições financeiras e grandes companhias, por exemplo, utilizavam essas ferramentas no dia a dia das suas corporações. Outras, no entanto, passaram a implantar programas de compliance como consequência da Lei Anticorrupção.

Um dos bons exemplos vem da indústria fumageira. Maior companhia de tabaco do país, a Souza Cruz já possuía manuais de conduta estruturados antes mesmo da edição da legislação de combate à corrupção. Mas foi a partir de 2016 que a área ganhou robustez com a criação de um programa de integridade.

Bom exemplo no setor fumageiro, a Souza Cruz já possuía manuais de conduta antes da legislação de combate à corrupção.

“A companhia já possuía um código de conduta. Pode-se dizer que a criação do Programa de Integridade não foi uma mudança na cultura organizacional, mas um reforço dos valores vinculados à ética e das ações de mitigação dos riscos relacionados ao compliance, como suborno e corrupção. Buscamos atender à legislação brasileira e internacional aplicável aos nossos negócios”, explica a gerente de Compliance da Souza Cruz, Vivianne O’Connor.

Em 2018, a área ganhou autonomia com a implantação do setor Compliance & Gerenciamento de Riscos. A medida consolidou a cultura de integridade na empresa e sua cadeia produtiva. “As melhorias de processos têm como objetivo conferir mais transparência e garantir a lisura em nossos negócios e na relação com a sociedade”, frisou Vivianne. Os procedimentos de auditoria de fornecedores foram revisados e, consequentemente, fortalecidos. “Rever os processos de due diligence é uma forma de mitigar o risco de suborno e corrupção, bem como de lavagem de dinheiro”, salienta.

Entre os benefícios diagnosticados pela empresa desde o fortalecimento do compliance está a maior produtividade dos funcionários. “Notamos que todos os colaboradores, independentemente do nível hierárquico, confiam no programa de integridade e têm ciência dos valores éticos da Souza Cruz. É natural entender que isso se reflete no grau de satisfação de cada um e na entrega de resultados”, aponta.

Para a manutenção da integridade e do fortalecimento da imagem empresarial, segundo a executiva, é necessário monitorar constantemente os riscos relacionados ao compliance e as melhores práticas adotadas pelo mercado. A tendência se intensificou nos últimos anos, sobretudo a partir da edição de normas mais rigorosas de combate à corrupção no país.

“É notório que o ambiente de negócios no Brasil, assim como em vários outros países, está em transformação. Há um conjunto de fatores que favorecem a ética e a transparência. E isso é muito positivo. A Souza Cruz apoia todas as iniciativas de combate à corrupção, e tem trabalhado para contribuir com esse momento de transformação a partir da execução de um programa de integridade cada vez mais robusto”, conclui Vivianne.

“É necessário criar e aplicar códigos de condutas e boas práticas”

O Grupo Verde Ghaia é considerado, há três anos, uma das companhias que mais crescem no país. Composto por quatro empresas, presta, entre outros serviços, assessoria em gestão e atua com auditorias na área de compliance. CEO da organização, o empresário Deivison Pedroza conversou com a VOTO e falou sobre os reflexos da Lava Jato e da Lei Anticorrupção e a importância da implantação de programas de integridade para as companhias.

CEO do Grupo Verde Ghaia, Deivison Pedroza analisa as consequências da Lava Jato para a cultura do compliance no Brasil.

VOTO. O que mudou para o país a partir da Lei Anticorrupção? Quais os reflexos que esta nova legislação trouxe para as empresas brasileiras e de que forma vem contribuindo com a transparência e lisura dos negócios?

Deivison Pedroza. A Lei Anticorrupção entra em um momento em que a população brasileira e os mercado internacional e nacional clamam por uma mudança de comportamento em relação à corrupção, à desonestidade e à falta de compromisso. Notícias como os escândalos de desvio de dinheiro da Petrobras estavam se tornando cada vez mais comuns no cotidiano brasileiro. E isso, naturalmente, foi diminuindo a credibilidade das empresas brasileiras. A legislação dispõe sobre a responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública, nacional ou estrangeira. Trouxe sanções mais severas, determinações de políticas anticorrupção e incentivo à integridade, com o intuito de mudar a cultura do “jeitinho brasileiro” e valorizar novamente a imagem das empresas nacionais com esta mudança comportamental.

V. Hoje, muitos negócios possuem setores estruturados de compliance. Em sua opinião, que medidas as empresas devem adotar para fortalecer essa área?

DP. A alta direção é ponto chave na implementação da cultura de transparência e integridade das empresas, pois serve de exemplo para os demais colaboradores. Quando sócios e diretores apoiam o compliance, fica mais fácil também implementar na empresa as diversas condutas associadas. Além do respaldo pela alta direção, é necessário criar e aplicar códigos de condutas e boas práticas, bem como treinar todos os colaboradores da empresa, proceder com auditorias periódicas e aplicar sanções quando necessário.

V. E com relação aos pequenos negócios, que muitas vezes não possuem condições de implantarem departamentos específicos de compliance, qual o melhor caminho?

DP. Compliance significa estar de acordo com o ordenamento jurídico. Podemos dizer que uma empresa está em compliance quando possui uma cultura onde todos os colaboradores, inclusive a alta direção, agem com honestidade respeitando as regras e regulamentos. Dessa forma, deve agir com honestidade e integridade, aplicando devidamente as normas.

V. Há estudos que apontam que o grau de satisfação de trabalhadores é maior em companhias com um ambiente organizacional estruturado. A criação do programas de integridade e de setores de compliance trazem, de fato, esses benefícios?

DP. Sem dúvidas. Trabalhar em uma empresa ética, honesta e íntegra, com bons programas de integridade e de compliance, traz inúmeros benefícios para os seus colaboradores e para a própria organização. A produtividade dos colaboradores aumenta, assim como a integração entre eles, sem contar a credibilidade e confiança. Os benefícios se estendem aos fornecedores de serviços, acionistas e aos consumidores.

V. O Brasil testemunhou, nos últimos anos, uma série de escândalos de corrupção envolvendo o setor público e empresas de diversos ramos, como empreiteiras e instituições financeiras. A Lava Jato foi um divisor de águas nesse sentido. Que lições esta operação trouxe para as empresas, em sua opinião?

DP. A Lava Jato foi um divisor de águas na sociedade porque conseguiu, por meio de um grupo de procuradores e de um juiz de primeira instância bastante técnico, prender pessoas influentes que até então jamais seriam presas no Brasil, como donos de empreiteiras, políticos e outros. É como se a Lava Jato tivesse acendido um “sinal de alerta” em toda a sociedade. Com isso, a integridade, a retidão, a ética, a gestão de riscos e o compliance ganham cada vez mais força. Tornam-se, assim, condição sine qua non para uma empresa bem quista no mercado, por seus colaboradores, investidores, prestadores de serviços e consumidores.

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