A explicação para o que quase ninguém esperava

Contra parcela esmagadora das pesquisas e expectativas, Donald Trump superou Hillary Clinton e se elegeu presidente dos Estados Unidos. Voz isolada durante toda a campanha, o criador da tirinha Dilbert apostava na vitória do republicano. E, em livro, explica o que muita gente até agora não entendeu

Era noite de 8 de novembro de 2016. Os brasileiros acompanhavam o início das apurações das eleições americanas e foram dormir com a certeza de que Hillary Clinton seria a ungida pelas urnas. Afinal, era o que todas as pesquisas mostravam – e com larguíssima margem. Divulgado na véspera, o levantamento da Reuters/Ipsos cravava que a candidata do Partido Democrata tinha 90% de chances de se tornar presidente dos Estados Unidos. O favoritismo absoluto se manteve nas estatísticas enquanto os votos começavam a ser contabilizados.

Porém, tudo mudou naquela madrugada. E, na manhã de 9 de novembro, acordamos com uma notícia inesperada: o próximo ocupante da Casa Branca seria Donald Trump. Embora tenha perdido no voto popular, com 46,09% contra 48,18%, o republicano conseguiu o necessário para ganhar de acordo com as regras dos EUA. No colégio eleitoral, obteve 304 delegados, superando com certa folga a base dos 270 necessários para vencer.

Não foi apenas por aqui que o resultado caiu como uma bomba. Jornalistas e cientistas políticos de todo o mundo buscaram explicações para o que parecia inexplicável. Algumas que surgiram: fracasso do Facebook em coibir fake news, ressentimento de homens brancos, atuação de hackers russos, reação ao politicamente correto, conexão de Trump com o povo americano, principalmente os esquecidos. Os descontentes viveram um misto de ressaca e luto. O inconformismo e a revolta motivaram protestos, que tomaram as ruas de grandes cidades dos EUA.

Enquanto isso, um sujeito alcançava o auge após fazer uma aposta de alto risco e sair vitorioso. Não foi nada fácil: conhecido por ser o criador da tirinha Dilbert, Scott Adams afirmou publicamente, lá atrás, que Trump seria eleito e se engajou na campanha. Passando de cartunista a analista político, foi zombado por sua previsão e atacado por uma multidão nas redes sociais. Tornou-se persona non grata em muitos círculos sociais e perdeu amigos de longa data. Passado o tumulto, deixou de ser considerado como louco para se tornar um visionário.

A razão de tudo

Mas, afinal, o que ele viu que passou despercebido pela grande maioria dos veículos de comunicação, institutos de pesquisa e ditos especialistas? A história toda é contada em Ganhar de lavada: persuasão em um mundo onde os fatos não importam, lançado este ano no Brasil pela Editora Record. O livro oferece uma explicação consistente e desapaixonada dos motivos que levaram à eleição do polêmico empresário e apresentador de TV.

Scott Adams defende que a maior parte das decisões tomadas no dia a dia por nós não tem qualquer base racional: “Somos programados para responder à emoção, não à razão. Podemos ouvir 10% de um discurso – um gesto ali, uma frase aqui – e, se os botões certos forem apertados, decidir que concordamos. Em seguida, inventamos razões para justificar nossa decisão”.

O autor demonstra convicção ao afirmar que o republicano pertence a uma rara categoria de seres humanos: é um mestre persuasor. Consegue, apesar de todas as suas vulnerabilidades e defeitos, convencer as pessoas e vender com sucesso a sua visão de mundo. “Poucas pessoas achavam que Donald Trump venceria a eleição para a presidência em 2016. Parte da razão foi o fato de não compreenderem o poder da persuasão. Trump é o melhor persuasor que já encontrei”, escreve, acrescentando que o atual presidente tem uma “notável pilha de talentos”.

Uma figura única

O livro é uma prazerosa viagem pela campanha presidencial americana e resgata algumas passagens marcantes daquela disputa. Uma delas envolve o primeiro debate republicano, quando Trump ainda tinha de superar adversários poderosos – como Jeb Bush, Marco Rubio, Ted Cruz. A mediadora começou a fazer a pergunta diretamente a ele: “Você já chamou as mulheres das quais não gosta de ‘vacas gordas’, ‘cadelas’, ‘porcas’ e ‘animais nojentos’…”. Foi quando o então pré-candidato interrompeu: “Só Rosie O’Donnell”, referindo-se a uma controversa personalidade americana.

Para Scott Adams, aquela questão poderia ter encerrado, ali mesmo, o sonho de Trump ser eleito presidente. “Considere como um político normal e convencional teria lidado com a armadilha. A maioria teria declarado coisas positivas sobre as mulheres e tentado mudar de assunto. Mas essa estratégia era falha, porque havia muitos registros públicos das declarações passadas de Trump sobre as mulheres”. E conclui: “Trump garantiu que toda a atenção da mídia estaria nele porque a menção a Rosie O’Donnell era simplesmente interessante (e engraçada) demais para ser ignorada. E retirou toda a atenção de seus dezesseis competidores, tornando-os desinteressantes por comparação”.

Apelidos e apelo visual

Um aspecto que impulsionou a campanha, segundo Scott Adams, foi a estratégia de colocar apelidos em seus adversários. Eles eram usados nos comícios e debates, destacando defeitos de quem estava em seu caminho. Hillary foi chamada de “a torta”; Jeb Bush, de “desanimado”; e Ted Cruz, de “o mentiroso”. As alcunhas maldosas, mas que tinham um fundo de verdade reconhecido pelos eleitores, se popularizaram. E foram minando a reputação de um por um.

Outra habilidade demonstrada foi o uso adequado da persuasão visual. Trump repetia, sempre que podia, que construiria um muro entre os Estados Unidos e o México.  Ele não dava detalhes, e isso era suficiente para cada um imaginar como seria na vida real. Enquanto outros candidatos falavam que empregariam diversos meios para aumentar a segurança nas fronteiras, ele era direto: “Vamos construir um grande e belo muro”. Era o que precisava para pautar o debate, mostrar atitude e gerar imagens na cabeça das pessoas.

Lições que ficam

Nem sempre Donald Trump se saiu bem, cometendo alguns deslizes que colocaram em risco sua caminhada. Ele demorou, por exemplo, para repudiar a Ku Klux Klan. Em alguns casos, foi longe demais ao adotar uma postura grosseira contra a imprensa e seus concorrentes. Também pegou mal sua imitação ridicularizando Serge Kovaleski, jornalista que tem deficiência. O vazamento de um áudio dele dizendo que “quando você é uma estrela, você pode fazer qualquer coisa com as mulheres”, e outras falas piores, foi desastroso. Mas nada disso foi suficiente para que perdesse a eleição para Hillary Clinton – que, assim como ele, era uma figura controversa e registrou grandes erros durante a campanha.

Ganhar de lavada pode ser lido como um guia, até mesmo por pessoas que não atuam nem se interessam por política. Em alguns momentos, o autor é demasiadamente autorreferente e se torna prepotente, como se tivesse acesso a uma sabedoria superior e inacessível aos demais mortais. Porém, as dicas de persuasão [confira algumas no quadro da página 93], que permeiam o livro, oferecem ensinamentos valiosos para o dia a dia, de forma acessível e prática. Para quem gosta de política, a obra traz insights que se aplicam às eleições brasileiras. Enfim, o público tem à sua disposição um estudo que propõe respostas para um evento que, até hoje, muita gente não entendeu.

DICAS DE PERSUASÃO

Ao longo do livro, Scott Adams compartilha mais de 30 orientações. Confira as 10 principais:

  1. Exiba confiança (real ou simulada) para aumentar seu poder de persuasão
  2. Adivinhe o que alguém está pensando e diga em voz alta
  3. Repetição é persuasão. Repetição é persuasão
  4. Deixe de fora qualquer detalhe que seja desimportante
  5. Quando você ataca crenças de alguém, é mais possível que ela enrijeça suas crenças do que as abandone
  6. Se estiver vendendo, peça a seu potencial cliente que compre de forma direta
  7. Imite o estilo de fala de sua audiência
  8. Explicações simples parecem mais críveis que explicações complicadas
  9. A persuasão é efetiva mesmo quando o receptor reconhece a técnica
  10. Encontro um meio-termo entre desculpar-se demais e jamais se desculpar

DICIONÁRIO

Na obra, o autor explica alguns conceitos importantes para entender o fenômeno Trump e outros líderes que se destacam pela persuasão. Veja:

  • Dissonância cognitiva: condição mental na qual a evidência conflita tanto com a visão do mundo de uma pessoa que ela espontaneamente gera uma alucinação para racionalizar a incongruência
  • Manobra do terreno elevado: método de persuasão que envolve elevar o debate dos detalhes sobre os quais discordam para um conceito superior sobre o qual todos concordam
  • Mestre persuasor: alguém com tal maestria das ferramentas de persuasão que pode mudar o mundo. Mestres persuasores são raros
  • Tiro linguístico certeiro: é um apelido ou conjunto de palavras tão persuasivo que pode encerrar um argumento ou criar um resultado específico
  • Viés de confirmação: é a tendência humana de acreditar irracionalmente que novas informações apoiam sua visão de mundo, mesmo quando não o fazem

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