Que tiro foi esse?

Nos tempos em que o pessoal andava armado, as cidades viviam em sobressalto com a possibilidade de tiroteios irromperem a qualquer momento. Questões ligadas à política, então feita com a bílis, ou à honra estavam em geral no cerne desses entreveros.

A história gaúcha está coalhada de exemplos, como a tropelia do Clube Júlio de Castilhos, em Santa Maria, em setembro de 1907, ou o motim de junho de 1917, em Lagoa Vermelha, ou, ainda, a chacina do Clube Pinheiro Machado, em Livramento. No dia 29 de setembro de 1910, uma discussão estalada nesse clube republicano, espécie de sede de uma sublegenda partidária, em época de ânimos exaltados, degenerou em tiroteio, quando foram disparados mais de 30 balázios e caíram varados dois irmãos do até havia pouco todo-poderoso João Francisco Pereira de Souza, comandante do regimento do Cati, além dos companheiros Serafim Garcia e Lauro Bicca.

Os assassinos – Dr. Mello Guimarães, juiz da comarca, Aminthas Maciel, subintendente e delegado de polícia, e Salustiano Maciel, editor-chefe de A Fronteira, jornal de propriedade da família Flores da Cunha – homiziaram-se no Uruguai. Dali seguiram para Porto Alegre, sendo brindados com a impunidade, graças à mediação de José Antônio Flores da Cunha, então deputado na Assembleia, junto ao presidente Antônio Augusto Borges de Medeiros. Consta que o Partido Nacional (blanco) colocou à disposição de João Francisco cerca de 10 mil homens armados para invadir Livramento e vingar a morte dos irmãos. Mas o antigo braço forte de Júlio de Castilhos na fronteira, odiado pelos federalistas, pelos dissidentes de 1907 e agora pelos borgistas, recusou a aventura revolucionária e retirou-se temporariamente do Estado, provavelmente aconselhado pelo amigo Pinheiro Machado

Na turbulenta Santana do Livramento, em 24 de julho do ano seguinte, mais de cem tiros foram disparados em plena Praça General Osório, afora os duelos com armas brancas que se davam em paralelo. Entre mortos e feridos na peleja estava o subintendente Manuel Antônio Pires, sujeito considerado irascível, responsável pelo comando da polícia municipal.

Engana-se quem pensa que tais barracos não alcançavam a refinada capital, orgulhosa de seus cafés, confeitarias chiques e comércio elegante com vitrines em estilo francês. Em 1923, o ministro da Guerra, marechal Setembrino de Carvalho, veio a Porto Alegre com a espinhosa missão de pacificar o Rio Grande do Sul, sacudido desde o ano anterior por mais uma revolução, detonada pela oposição ao presidente Borges de Medeiros, tão logo a todos ficara patente que a reeleição do eterno presidente fora alcançada por meio de alquimia processada pela Comissão Eleitoral da Assembleia dos Representantes, que então contabilizava o resultado dos votos, presidida por ninguém menos do que o jovem deputado Getúlio Vargas. A oposição, liderada por Assis Brasil, vinha sustentando escaramuças no interior justamente com o objetivo de suscitar uma intervenção federal no irridente estado meridional, hegemonizado pelo Partido Republicano desde fins do século XIX. Constou, todavia, que esse enviado de escol se entrevistara com lideranças oposicionistas ao cruzar a divisa com Santa Catarina, na Serra, o que teria agastado o circunspecto Borges. Por esse motivo, calorosa foi a recepção que os assisistas promoveram ao ministro, conhecido então pelo jocoso apelido Chantilly de Mistinguette (a alusão às botas de montaria estilo Chantilly que ele calçava está clara, mas é um mistério como a famosa cantora francesa Mistinguet entrou na brincadeira…).

Naqueles tempos, nove entre dez estrelas se hospedavam no glamoroso Grande Hotel, sito na Praça da Alfândega, na esquina da Rua da Praia com a Rua Caldas Júnior. Era uma espécie de sede não oficial de todos os políticos importantes que passavam pelo Rio Grande do Sul. Ficaram famosas as reuniões e os almoços que reuniram Osvaldo Aranha, Maurício Cardoso, João Neves da Fontoura e Flores da Cunha antes do estouro da Revolução de 3 de outubro de 1930: dizem que boa parte dela foi tramada ali. Em seus apartamentos hospedaram-se também o general norte-americano Mark Clark e o marechal Cândido Rondon. Getulio Vargas lá morou com a família, assim como Flores da Cunha, que fez de uma suíte sua residência durante o tempo em que governou o Estado, nos anos 1930. O famoso hotel foi desativado em 1957, e o belo prédio incendiou-se dez anos depois, sendo demolido, para dar lugar a um tenebroso espigão.

Quando o marechal Setembrino de Carvalho assomou à altiva varanda do Grande Hotel, no dia 1º de novembro, cercado de políticos da situação, pairava nervosa tensão sobre a Praça da Alfândega, então coração social e comercial da cidade. De fronte se ajuntava compacta multidão. O quadro estava armado quando um exaltado agitou um lenço vermelho, símbolo da oposição maragata, ato contínuo ouvindo-se um estampido. Era conhecido o estratagema de dispersar multidões desse modo. Getúlio Vargas, quando estudante, em 1907, teria feito o mesmo, para dissolver um comício da oposição na Praça da Matriz, em frente à janela do presidente Borges de Medeiros, no Palácio Provisório, onde hoje está o Memorial do Ministério Público.

Assim, ao ouvir o disparo que interrompia a saudação do ministro da Guerra, o povo correu em desabalada. Um piquete da Brigada Militar, que se postava num terreno baldio onde hoje se ergue o prédio do jornal Correio do Povo, interveio, ampliando o pânico. Mais estampidos, balas varando o ar. Caíram mortalmente alvejados uma jovem de 14 anos e o diretor da Fazenda da Intendência (equivalente ao secretário municipal), que nada tinham a ver com o pato. No meio da praça, ajoelhado, um conhecido barbeiro descarregava o revólver sobre as forças. Na sacada do Grande Hotel, o deputado Ariosto Pinto, fleumaticamente trajando fraque, limpava-se com um lenço, depois de quase atingido na cabeça por uma bala que lhe raspou o ombro, estilhaçando o reboco. Atiradores improvisaram trincheiras por trás dos montes de paralelepípedos empregados no novo calçamento da rua da Praia. Mais um, revólver em riste, tombou no meio da praça.

Em pleno combate, encostou na porta giratória do hotel o automóvel oficial do austero Borges de Medeiros, que foi cumprir rápida visita protocolar – coisa rara, já que normalmente todos tinham de se deslocar até ele, em palácio. Cessou o tiroteio, e uma expectativa a todos. À saída, um princípio de vaia foi logo abafado com um aceno discreto, contido pelo olhar penetrante de azul mortiço de peixe recém-pescado do velho líder chimango. Borges escorregou para o veículo, que se retirou calmamente, como se nada na rotina da Capital estivesse em perturbação. Tão logo o carro desapareceu na esquina, reavivou o tiroteio. O saldo final foi de cinco mortos e 32 feridos. Durante anos, as marcas de bala podiam ser identificadas nas fachadas dos prédios do Grande Hotel e da Caixa Econômica Federal, na face oposta. A revolução de 1923 terminou poucos dias depois, com a assinatura de um tratado no castelo de Pedras Altas, residência de campo de Joaquim Francisco de Assis Brasil, garantindo a permanência de Borges no poder por mais um mandato, mas abolindo o famigerado instituto da reeleição, que permitira o longo consulado de Borges de Medeiros.

História | Gunter Axt

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