De frente para a esperança

POR PATRÍCIA LIMA

Enquanto o mundo entrava em compasso de espera diante da ameaça invisível que se espalhava rapidamente nos primeiros meses de 2020, alguns profissionais se tornaram uma espécie de escudo entre a população e o coronavírus. Os profissionais da linha de frente, sejam eles médicos, enfermeiros, farmacêuticos ou gestores de saúde não pararam, não recuaram, não esmoreceram. Cansados, exigidos e desafiados, vêm entregando tudo de si para o combate da pandemia de Covid-19, desde que os primeiros casos foram confirmados em território brasileiro. Munidos do senso de compromisso no exercício de suas profissões, eles deram esperança, alento e ajuda aos que sentiram as mais variadas dores durante a pior crise sanitária do século.

Uma pesquisa da Fiocruz realizada com 25 mil profissionais em todas as regiões do país demonstra que a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% deles, com quase 50% admitindo excesso de trabalho. O levantamento, feito pela Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e pelo Centro de Estudos Estratégicos (CEE/Fiocruz) concluiu ainda que cerca de 25% da força de trabalho que atuou na linha de frente da saúde foi infectada pelo coronavírus.

Nenhum desses obstáculos, porém, retira do profissional de saúde a urgência de sua missão, que é salvar e proteger vidas. De norte a sul do Brasil, por trás das máscaras e da apreensão, existem homens e mulheres que sorriem a cada alta hospitalar, a cada vacina aplicada, a cada boletim epidemiológico que comprova que o pior já passou.

Ao caminharmos para o controle da pandemia de Covid-19 depois de uma das maiores campanhas de vacinação do mundo, ficam lembranças e lições personificadas em cada profissional da linha de frente. Conheça alguns deles, que representam uma multidão de gente que, ao fazer o seu trabalho, aliviou nossas dores e nos ajudou a chegar até aqui.

O valor das coisas simples

Tiago Paviani, enfermeiro

Em uma noite quente de fevereiro de 2020, o enfermeiro Tiago Paviani, 32 anos, assistia televisão com a noiva quando ela comentou, depois de ver uma notícia: “olha, esse vírus novo lá da China vai chegar aqui, hein?!?”. Incrédulo e até meio debochado, disse a ela que não se preocupasse. Seria mais uma epidemia restrita ao Oriente. Menos de dois meses depois, já estava atendendo os primeiros pacientes graves com Covid-19, internados no Centro de Terapia Intensiva do Hospital Moinhos de Vento, em Porto Alegre, onde é supervisor de enfermagem. Antes dos primeiros casos serem confirmados no Brasil, Paviani e as equipes que atuariam no atendimento nos leitos clínicos e de CTI do hospital já estavam sendo treinadas para executar os procedimentos médicos e as rotinas de segurança e desinfecção que evitariam surtos no ambiente.

Nem todo o treinamento, no entanto, foi capaz de preparar os profissionais para o que viria. “Passamos períodos de muito medo. Medo de adoecer, de infectar a família, de perder os pacientes. E chegou um momento em que todos estavam cansados, esgotados. Foi difícil, perdi a conta de quantas vezes desabei ao chegar em casa” relembra. Alguns períodos foram particularmente duros, como quando algum colega adoecia gravemente. No caso mais crítico, um dos enfermeiros que atuava na CTI desenvolveu um quadro severo de Covid-19, provocando a comoção dos colegas e desestabilizando as equipes. Responsável pela gestão da enfermagem na Terapia Intensiva, Paviani tinha que lidar com a própria emoção ao escalar os turnos para os cuidados com o amigo, que felizmente respondeu ao tratamento e, depois de um longo período, deixou a unidade, com a festa e o aplauso de colegas que saíram de todos os cantos do hospital para celebrar sua alta.

As festas a cada alta, aliás, ficarão na memória de Tiago Paviani para sempre. Ainda revê vídeos de pacientes que estiveram cara a cara com a morte e, devido ao esmero da equipe, conseguiram vencer a Covid. Hoje, com o fluxo de pacientes sob controle na CTI e nas alas de enfermaria no hospital devido ao avanço da vacinação, o enfermeiro está animado e não acredita em um recrudescimento grave da pandemia. Com mais vacinas aplicadas à medida que o tempo passa, os números de internações e óbitos registrados nos primeiros meses de 2021 não estão mais no horizonte. Com a segurança e relativa tranquilidade, ele reflete sobre o valor da vida e das coisas simples e importantes, muitas delas deixadas de lado para combater a Covid-19. “Não sabia que sentiria tanta falta de passar na casa da minha mãe para tomar um café”, salienta.

Provações e aprendizados para além da pandemia

Marcelo Gazzana, médico, chefe do Serviço de Pneumologia e Cirurgia Torácica do Hospital Moinhos de Vento

A medicina nunca mais será a mesma depois da Covid-19. Avanços extraordinários em um espaço curtíssimo de tempo serão o maior legado da pandemia, segundo o chefe do Serviço de Pneumologia e Cirurgia Torácica do Hospital Moinhos de Vento, Marcelo Gazzana. À frente de quatro Unidades de Terapia Intensiva e cinco enfermarias exclusivas para pacientes com coronavírus, Gazzana afirma que, com o passar dos meses, a ciência foi compreendendo a dinâmica da doença, o que melhorou o atendimento e o trabalho das equipes de saúde. “O Brasil foi um dos países que mais produziu conhecimento sério sobre os tratamentos e o manejo da Covid no mundo. Hoje sabemos infinitamente mais do que sabíamos no início de 2020, quando chegaram os primeiros casos. E seguimos fazendo pesquisa de qualidade”, assegura. E é justamente esse saber acumulado que vai mudar a medicina, de acordo com o médico. O uso de máscaras de proteção em todos os ambientes hospitalares, por exemplo, será regra. E mesmo nas ruas e ambientes públicos, o acessório de proteção não será totalmente eliminado por um bom tempo.

Um grupo de 15 médicos pneumologistas, infectologistas e intensivistas trabalhou em conjunto desde o início da crise no Hospital Moinhos de Vento, sempre em busca de soluções mais seguras e eficientes para os pacientes. O que nem sempre foi fácil. O esgotamento físico das equipes nos períodos de maior demanda ficou evidente, exigindo dos médicos um esforço enorme para aguentar turnos estendidos, que começavam de manhã cedo e não terminavam antes da madrugada do dia seguinte. Gazanna chegou a ficar três meses sem folga e longe da família, que se refugiou na casa de praia para minimizar os riscos de contágio.

Hoje, o médico se divide entre seus pacientes de consultório, onde atua como pneumologista clínico, e os casos de Covid que ainda chegam ao hospital, que é referência no Estado. Nada, porém, se compara aos momentos de horror vividos no hospital quando os doentes não paravam de chegar. Para se ter uma ideia, o Moinhos de Vento mantém ativa somente uma UTI para pacientes graves com coronavírus. “É óbvio que isso é fruto da vacinação, não temos nenhuma dúvida disso. A vacina é um estímulo forte ao sistema imunológico, mais forte do que a infecção pelo vírus, por isso a proteção é eficiente. É fundamental completar o ciclo vacinal e tomar a dose de reforço”, alerta.

Orientação e conforto ao alcance do balcão

Rossano Braun, farmacêutico e proprietário de três lojas da rede Farmácias Associadas, em Porto Alegre

O farmacêutico Rossano Braun, 35 anos, mal conseguiu segurar a emoção quando, em uma manhã ensolarada de março deste ano, abriu o frasco do primeiro lote de vacinas contra a Covid-19 que chegara em sua farmácia na tarde anterior. Quando a seringa entrou no braço da pessoa que aguardava na fila, sentiu um misto de alívio, alegria, sensação de dever cumprido e, ao mesmo tempo, uma ponta de angústia pelos milhões de brasileiros que ainda não haviam tido a felicidade de iniciar o ciclo de imunização. “Nunca vou esquecer esse momento, vou guardar por toda a vida o sentimento de ter participado desse grande esforço. Já aplicamos mais de 15 mil doses na farmácia e estamos prontos para aplicar ainda mais”, diz ele, emocionado.

Os primeiros meses da pandemia foram os mais difíceis para Braun. Proprietário de três lojas da rede Farmácias Associadas no Centro Histórico de Porto Alegre, o farmacêutico viu seu movimento desabar quando as primeiras restrições de circulação foram implantadas. Ao mesmo tempo em que sentia medo de precisar demitir funcionários – o que não ocorreu –, sabia que tinha que investir para treinar a equipe, minimizando os riscos de contaminação no balcão, durante o atendimento ao público. Pai de duas filhas pequenas, também temeu pela segurança da família. “Mas parar não era uma opção para nós. Precisávamos nos manter abertos para acolher as pessoas, que estavam perdidas, precisando de atenção e orientação. Esse é o papel do farmacêutico”, salienta.

Acompanhar as descobertas da ciência sobre a Covid-19 foi um desafio constante para Braun, que buscava o conhecimento sério para conciliar a ética da profissão com o atendimento dos pacientes, que ora não acreditavam na doença, ora estavam em pânico e queriam tomar todos os remédios sobre os quais ouviam falar. Como todos os profissionais da área da saúde, também se sentiu esgotado e, em muitos momentos, tomado pelo cansaço. Mas resistiu. “Procurei me cuidar para poder cuidar dos outros. A farmácia é o primeiro porto seguro da comunidade em momentos como esse. Por isso não podemos falhar”, completa.

Uma mulher no comando para reverter o cenário

Shádia Fraxe, secretária de Saúde de Manaus

Ao tomar posse como secretária de saúde do epicentro da pandemia no país, em janeiro de 2021, a médica Shádia Fraxe descobriu que havia 2,5 mil servidores afastados de suas funções por Covid ou outras doenças. “Eu me sentava, colocava as mãos na cabeça e pensava: por onde vou começar? Não tenho nem servidores para trabalhar”, relembra Shádia. Antes de assumir o enorme desafio de gerir a saúde na cidade mais afetada pela crise do coronavírus, a médica comunitária já estava na linha de frente do combate à doença. Além de coordenar um hospital de campanha, também havia assumido como responsável em um lar de longa permanência de idosos. Agora, além de resolver os problemas pontuais, ela tinha o desafio de planejara e executar a maior campanha de vacinação da história do país, para a qual não havia mais do que somente rascunhos. Ela encarou o desafio. E não decepcionou.

“Junto com a equipe da Secretaria, virávamos as madrugadas planejando a campanha de vacinação, que tinha que estar estruturada quando as primeiras doses chegassem ao país. Esse enorme desafio foi justo para a primeira secretária mulher na pasta”, destaca. Além de operacionalizar a imunização, Shádia também precisou lidar com o fechamento de muitas unidades básicas de saúde, que precisavam reabrir com urgência para atender a população. Em algumas semanas conseguiu reabrir todas e estender o horário dos 20 postos dedicados exclusivamente a acolher os pacientes com suspeita de Covid-19. Também conseguiu suprir as vagas dos servidores afastados, além de abrir um concurso público para preencher duas mil vagas na Saúde, o que não ocorria há quase dez anos. Além disso, precisou seguir lidando com outras doenças que tradicionalmente são atendidas pela saúde no município, como malária e diabetes.

Hoje, 70% da população de Manaus já está com a imunização completa e mais de 90% já tomou ao menos a primeira dose. Enquanto Shádia concede esta entrevista à Voto, a cidade atinge as três milhões de doses de vacina aplicadas desde o início da campanha. De epicentro da pandemia no início do ano, a cidade leva agora uma vida praticamente normal, sem agravamento no perfil epidemiológico. A vacinação ocorre de forma descentralizada em 51 pontos da capital amazonense, atingindo uma média que varia entre 10 e 15 mil pessoas por dia. Pesquisadores de instituições de saúde internacionais buscam dados na Secretaria, para servirem de referência em campanhas de vacinação ao redor do mundo. O desafio, porém, continua. “Ainda temos que enfrentar muitas pessoas com medo da vacina. Nosso trabalho tem sido orientar, desmistificar, incentivar. Basta olhar para Manaus para comprovar a eficácia. Somos a mesma cidade do início de 2021, que sofreu aquela enorme onda de casos e mortes. O que mudou? A vacina”, alerta Shádia.

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