As lacunas entre a Cannabis e o mercado brasileiro

Mal se fala em outra coisa. O governo Lula já teve início. As manchetes sobre os ataques em Brasília jazem guardadas em algum armário. O carnaval ainda está a semanas de distância, e a volta à rotina depois dele ainda é propositalmente ignorada. E é nesse cenário intersticial entre grandes eventos que a discussão sobre cannabis medicinal floresce mais e mais.

Tudo começou quando o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou, na noite do dia 31 de janeiro, uma lei que autoriza a distribuição gratuita de medicamentos à base de canabidiol na rede pública de saúde do Estado. A lei, de autoria do deputado estadual Caio França (PSB), é a primeira a ser sancionada por Tarcísio. Com isso, vem tomando força, no Brasil, uma tendência que já é de caráter global — a flexibilização e a regulamentação do uso dos princípios ativos da cannabis em tratamentos médicos.

Para 2023, espera-se que grandes farmacêuticas expandam suas atividades, o que pode fazer o mercado de produtos derivados de cannabis triplicar. Além disso, existem empresas especializadas que iniciaram suas atividades já no ano passado, cujas projeções também vislumbram crescimento exponencial nas vendas. Dessa forma, a escala de produção dos medicamentos deve aumentar, fazendo os custos, hoje altos, diminuírem.

Lentidão e encarecimento  

Entretanto, em nosso país, a realidade não é animadora. O cenário obedece a uma arquitetura de etapas que contribuem para o encarecimento dos produtos: pesquisa e desenvolvimento, preparação de dossiers para análise e registro pela Anvisa, e, ainda, produção de plantas farmacêuticas com boas práticas de fabricação.

Paralelamente, o lado não tangível da situação segue à espreita: a mentalidade das pessoas. É verdade que, com o avanço dos estudos e a disseminação das notícias, nota-se mais flexibilidade e até um aceite maior da população, afinal, é cada vez mais comum saber de histórias de sucesso a partir do tratamento com remédios à base de canabidiol — substância retirada da Cannabis, mas sem efeitos entorpecentes.

Mercado de US$ 30 bilhões

A partir do momento em que pudermos transpor as muralhas do preconceito e compreender que essa é uma solução medicinal inquestionável, será possível, enfim, ter uma perspectiva muito maior, uma vez que, além dos benefícios para a área da saúde, a regulamentação da Cannabis no país tem um papel importante no desenvolvimento econômico. Por si só, o segmento é capaz de atrair cerca de US$ 30 bilhões e gerar 300 mil empregos no país, segundo projeções da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann).

No Uruguai, brasileiros vislumbraram a oportunidade de trabalhar com o uso medicinal da planta desde 2013, quando o país legalizou e regulamentou a atividade. É o caso do CEO da PucMed (Productora Uruguaya de Cannabis Medicinal), Alfonso Cardozo Ferretjans. Fundada em 2019, a startup atua no cultivo e fornece cannabis e seus derivados para fins industriais, medicinais e acadêmicos, com capacidade de tratar mais de 7 mil pacientes por mês. No final do ano passado, a empresa foi avaliada em US$ 27 milhões, e tem como objetivo abrir capital na bolsa de valores — inclusive na B3, de São Paulo.

Segundo Ferretjans, “o mercado tem se mostrado positivo com os retornos da área médica e com a resposta da população. Na pandemia, o aumento de casos de ansiedade, depressão e burnout aumentou os testes de medicamentos com cannabis para aplacar essas patologias. O consumo e as exportações estão maiores. A oportunidade é agora”.

Licença à esperança 

É preciso um trabalho consistente de desconstrução e reconstrução, primeiramente dissociando a Cannabis das ideias de proibição, tráfico de drogas e criminalidade, passando a associá-la à qualidade de vida, ao alívio de dores e aos demais benefícios à saúde, principalmente para pacientes que sofrem de doenças como epilepsia, esquizofrenia, Parkinson, Alzheimer, isquemias, diabetes e câncer. Com Tarcísio de Freitas, foi assim: sancionou a lei porque viu seu sobrinho, diagnosticado com síndrome de Dravet, ganhar qualidade de vida quando passou a ser tratado com canabidiol. “Você vê uma criança que, em vez de estar brincando, está convulsionando. Cada convulsão subtrai um bocadinho da vida”, disse o governador.

Agora é a hora de São Paulo fazer jus à sua imagem de líder da América Latina e inspirar os demais estados, abrindo caminho à democratização do acesso. Hoje, alguns, inclusive, já contam com leis sancionadas relativas a esse mérito, porém não estão vivas – reféns do puro preconceito. Com a novidade na política pública, a expectativa é de que a discriminação, eventualmente, alivie as suas amarras e dê lugar à esperança.

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