SÃO ELAS NA CIÊNCIA

Dia 10 de abril de 2019. O mundo via com fascínio e incredulidade a primeira imagem real de um buraco negro, um dos fenômenos mais incríveis — e invisíveis — da Astronomia. Obtido graças ao trabalho de pesquisadores de todo o globo pelo projeto Event Horizon Telescope, o avanço abriu caminho para uma série de descobertas e pesquisas sobre nosso universo. E, de quebra, comprovou mais uma teoria descrita por Albert Einstein.

No mesmo dia, outra imagem corria o mundo. A alegria incontida de Katie Bouman evidenciava a realização sem par de fazer parte de um momento histórico. Engenheira e cientista da computação, a americana formada pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT) foi parte fundamental no desenvolvimento de um algoritmo utilizado para obter o registro inédito do buraco negro. Sua contribuição para um acontecimento dessa magnitude imediatamente gerou discussões sobre a presença das mulheres na ciência.

Historicamente, mulheres foram minoria em diferentes campos de estudo, como Física, Informática, Química e Astronomia. Embora a participação feminina tenha aumentado nas últimas décadas, o cenário ainda é de disparidade no Brasil e em todo o mundo — diferença que aumenta conforme se avança na carreira, no chamado “efeito tesoura”.
Entre os pesquisadores bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), 59% são mulheres na iniciação científica. Já entre os financiamentos maiores, elas representam 35,5%. E nas bolsas 1A, de maior prestígio, respondem por 24,6% dos recursos. Maior instituição da categoria no país, a Academia Brasileira de Ciências tem apenas 14% de membros titulares do sexo feminino.

Mas quais as razões para tais números? Uma questão cujas raízes perpassam papeis geralmente atribuídos às mulheres na sociedade. E que se iniciam, muitas vezes, com a falta de exemplos de representatividade ainda na infância. “Ainda no colégio, via tantos exemplos de físicos renomados que descobriram o átomo, criaram teoremas matemáticos e me perguntava se alguma menina descobriu algo importante”, relembra Mellanie Dutra, doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

E exemplos não nos faltam em nossa história. O panteão da ciência que inscreveu nomes como Albert Einstein, Nikola Tesla e Galileu Galilei também é o lugar de mulheres como Hipátia de Alexandria, Marie Curie e Rosalind Franklin [veja mais no quadro das páginas seguintes]. Embora suas contribuições tenham sido essenciais em diversas áreas, muitas vezes a participação dessas pioneiras foi negligenciada. É o caso da alemã Lise Meitner, cujo trabalho na descoberta da fissão nuclear foi deixado de lado pelo colega Otto Hahn, que conquistou sozinho o Prêmio Nobel de Química em 1944.

Estímulos com resultados

De acordo com a Association for Women in Science (AWIS), uma série de obstáculos dificultam a atuação das mulheres na ciência, como menos oportunidades de avanços e interações negativas nos locais de trabalho. “Na faculdade, um professor disse que ‘mulher só entra na universidade para encontrar marido’. Já escutei que usamos o gênero para conquistar ‘coisas’, fazer contatos, como se nossos sucessos fossem consequência de sermos mulheres”, conta Carolina Brito, professora do Departamento de Física da UFRGS.

Embora preconceitos ainda estejam presentes, avançam as discussões sobre a presença feminina na ciência e a importância de ampliar esses espaços. Nos últimos anos, uma série de iniciativas têm sido desenvolvidas no Brasil e no exterior nesse sentido. Com sede nos Estados Unidos, a AWIS reúne mais de 100 mil associados em todo o mundo, realizando pesquisas, capacitações e estimulando iniciativas em instituições e corporações que fomentam a participação da mulher.

No país, o Prêmio L’Oréal para Mulheres na Ciência, criado em parceria com a UNESCO, já homenageou mais de 90 pesquisadoras brasileiras. Este ano, a honraria chega à sua 14ª edição. Nas universidades e sociedades, comissões e projetos de extensão têm chamado a atenção sobre o tema — caso do “Meninas na Ciência”, desenvolvido desde 2013 na UFRGS para atrair jovens para as exatas e tecnologia. Mais de 500 garotas foram envolvidas pela iniciativa. “Buscamos também estimular as mulheres que já escolheram essas áreas a persistirem e se tornarem agentes do desenvolvimento brasileiro”, enfatiza Carolina, coordenadora do programa.

Ações que, no entanto, precisam de mudanças culturais e sistêmicas para que se traduzam na tão sonhada equidade. “Sem isso, as estimativas atuais mostram que é provável que demore centenas de anos para alcançar a paridade de gênero na ciência”, ressaltam Heather Metcalf e Aspen Russell, pesquisadoras da AWIS. Alterações estruturais como ensino sobre igualdade nas escolas e maior diversidade em comitês, cargos e prêmios são apontadas como essenciais por Marcia Barbosa, diretora da Academia Brasileira de Ciência e vencedora do prêmio L’Oréal em 2013. “A família também tem de ser considerada nas instituições, com creches e contabilização do tempo de maternidade nas promoções e editais”, afirma.

Transformações que não acontecerão da noite para o dia. Mas situações como a grande repercussão do trabalho de Katie Bouman mostram que as pessoas estão mais abertas a discutir o tema. Falar sobre isso é o primeiro passo para despertar a consciência de que a ciência é um ambiente em que quaisquer diferenças, como as de sexo, são irrelevantes frente ao conhecimento e ao progresso – como reforça a pesquisadora Mellanie Dutra. “Absolutamente todas as pessoas são beneficiadas com o avanço científico. Prosperamos quando avançamos lado a lado. Não deveria haver espaço para preconceitos ou qualquer coisa destoante do pensamento de crescer e descobrir o desconhecido juntos.”

Professor Marcia Barbosa (Brazil), 2013 Laureate for Latin America, L’Oréal-UNESCO Awards For Women in Science, “For discovering one of the peculiarities of water which may lead to better understanding of how earthquakes occur and how proteins fold which is important for the treatment of diseases.”

EXEMPLOS DE ONTEM E DE HOJE

Conheça algumas pioneiras da ciência e mulheres que estão fazendo a diferença na atualidade.

HIPÁTIA DE ALEXANDRIA

Primeira mulher documentada como matemática, no século IV. Foi chefe da escola platônica de Alexandria, no Egito, lecionando Filosofia e Astronomia. É reconhecida por seu grande raciocínio lógico.

ADA LOVELACE

Matemática, escreveu o primeiro algoritmo para ser processado por uma máquina analítica. Por esse trabalho, é considerada a primeira programadora da história.

MARIE CURIE

Primeira mulher a ganhar um Nobel e a única a vencê-lo duas vezes, laureada em Física e Química. Descobriu os elementos Rádio e Polônio, além de ter concebido a Teoria da Radioatividade.

ROSALIND FRANKLIN

Química, foi pioneira na cristalografia de raios X. Seus estudos foram fundamentais para determinar a estrutura da molécula do DNA — o que daria, depois, o Nobel a James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins.

LISE MEITNER

Seu trabalho levou à descoberta da fissão nuclear, ao lado de Otto Hahn. A física, no entanto, não foi citada como coautora nas publicações do colega, que conquistou sozinho o Nobel.

JENNIFER DOUDNA

Bióloga molecular na Universidade da Califórnia em Berkley, é pioneira no desenvolvimento da tecnologia CRISPR/Cas9, ferramenta de edição do DNA.

THAISA BERGMANN

Astrofísica e professora da UFRGS, investiga buracos negros supermassivos no centro das galáxias. Em 2015, conquistou o Prêmio L’Oréal para Mulheres na Ciência.

MARCIA CASTRO

Primeira brasileira a ser professora titular em Harvard, inovou ao utilizar ferramentas de demografia para entender as dinâmicas de transmissão de doenças como zika e dengue.

JULIANA ESTRADIOTO

Com apenas 18 anos, seu estudo com o uso sustentável da casca de noz macadâmia conquistou o prêmio da Intel ISELF, maior feira de ciências do mundo. Além disso, terá direito a dar seu nome a um asteroide.

FRANCES ARNOLD

Conquistou em 2018 o Nobel de Química por seu trabalho com a evolução dirigida de enzimas, o que permitiu desenvolver biocombustíveis, remédios e outros produtos.

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